segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Manuscrito mais misterioso do mar Morto narra a saída de Noé após o dilúvio

Museu mostra pela primeira vez o mais frágil pergaminho milenar encontrado nas cavernas de Qumran. É uma cópia do “Gênesis” escrita em primeira pessoa

O Museu de Israel exibe pela primeira vez o Gênesis apócrifo, um dos manuscritos do Mar Morto que até agora havia permanecido guardado na câmara climatizada construída expressamente para abrigar os delicados manuscritos encontrados nas cavernas de Qumran, de mais de 2.000 anos de antiguidade e a que só os conservadores do museu têm acesso.

O pergaminho agora exposto é um dos textos mais misteriosos dos sete primeiros manuscritos do Mar Morto encontrados em 1947 em uma caverna do deserto da Judeia. “Era de longe o documento em pior estado, por isso até agora foi impossível mostrá-lo”, disse na segunda-feira o conservador Adolfo Roitman, diretor do Santuário do Livro.

Datado do século I antes de Cristo e escrito em aramaico, vai do capítulo 5 ao capítulo 15 do Gênesis. Uma parte da Bíblia que fala de Abraão e Noé, mas contada com diferenças significativas, por isso é considerado um texto apócrifo. Seu conteúdo não faz tremer as bases do Vaticano — que considera os manuscritos do Mar Morto de interesse universal —, mas se presta a ser objeto de novas teorias da conspiração para colocar em dúvida o texto Bíblico. “É sem dúvida uma cópia muito antiga de um texto original. Os traços da escrita são feitos com muito esmero, sem erros e isso nessa época só era possível se o documento a ser copiado estivesse diante do copista”, diz Roitman. No pergaminho, que pode ser visto em Jerusalém, é narrada a passagem do fim do dilúvio universal.

Diferentemente do Gênesis — que narra que Noé sai da arca com sua família e a primeira coisa que faz é erigir um altar e fazer um sacrifício a Deus — o manuscrito conservado na Cidade Santa conta como Noé faz o sacrifício dentro da arca. “De um ponto de vista histórico também faria sentido porque se estamos falando da destruição que arrasou a terra, o sacrifício teria sido feito para assegurar-se de purificar o exterior”, diz Roitman ao lado do escaparate que contém o texto. Além disso, os fragmentos do Gênesis apócrifo não são narrados em terceira pessoa, é o próprio Noé quem conta a história.

Sua enorme deterioração confundiu os especialistas durante décadas. Por isso nem sequer pôde ser digitalizado para consulta online. Das 22 colunas que o compõem, as melhor conservadas são as últimas, da 18 a 22. “Tem sua lógica porque ao permanecer enrolado, os caracteres do final do rolo são os que ficaram menos expostos à luz e à umidade”, explica Roitman. São os únicos fragmentos desse pergaminho que foram exibidos brevemente em 1955, no edifico Terra Sancta em Jerusalém, quando o à época primeiro-ministro de Israel, Moshe Sharett, anunciou que o Estado israelense havia comprado os quatro manuscritos perdidos que faltavam dos sete encontrados na chamada Caverna 1 de Qumran.

Decomposição

Os especialistas lidaram durante anos com a decomposição aparentemente imparável desse texto. Ao contrário de outros rolos encontrados na mesma caverna, esse manuscrito é um pergaminho, não um papiro, e sua tinta parece ser o que o faz tão frágil. “É composta por uma liga de carvão e resinas, como a tinta dos outros rolos, mas a do Gênesis apócrifo também contém cobre, o que faz com que seja especialmente sensível à luz. Temos fotografias em que essa deterioração é vista ao ser comparado o estado atual com o estado em que estava em 1955, quando o professor James Bieberkraut trabalhou nele pela primeira vez”, diz o conservador.

Bieberkraut foi o primeiro especialista em Israel que se encarregou da conservação dos rolos. Mas à época não se sabia que esse pergaminho é especialmente sensível à luz. Tanto que nem mesmo resistiria caso fosse exposto no Santuário do Livro, nas mesmas condições do restante dos documentos de Qumran. Por isso, para essa exposição os especialistas criaram um escaparate especial coberto com um vidro inteligente. O vidro é composto por duas camadas que permitem a passagem de um feixe de luz entre elas de maneira que, quando se aperta um botão, o pergaminho se torna visível durante somente 30 segundos, mas nunca é iluminado diretamente. O escaparate contém um chip que registra constantemente as condições ambientais.

“Os outros manuscritos são exibidos por partes. Mostramos um trecho diferente deles a cada três meses, assim asseguramos sua preservação. Mas com o Gênesis apócrifo não podemos fazer isso porque se desintegraria. Por isso essa ocasião para vê-lo é única”, diz Roitman. Os fragmentos serão expostos até julho. Depois, voltarão a dormir na câmara onde estiveram por mais de 50 anos.

PÉRIPLO MUNDIAL ATÉ JERUSALÉM

Os Manuscritos do Mar Morto são quase 1.000 pergaminhos e papiros escritos em aramaico e hebraico em onze cavernas das quase 300 inspecionadas em Qumran, no deserto da Judeia, na Cisjordânia, entre 1947 e 1956.

O Gênesis Apócrifo faz parte dos primeiros sete manuscritos encontrados em 1947 na chamada Caverna 1 por pastores beduínos da tribo dos Tamireh. Ao jogar uma pedra em um buraco e notar um som estranho decidiram retornar ao local preparados para escavá-lo. Encontraram dez potes de barro fechados e em um deles havia três manuscritos enrolados. Em outra visita ao local, descobriram outros quatro manuscritos e acabaram vendendo-os a vários comerciantes de Belém.

Um professor da Universidade Hebraica, Eleazar Sukenik, comprou três deles e os outros quatro foram adquiridos pelo arcebispo Athanasius Yeshue Samuel do Monastério siríaco ortodoxo de Jerusalém, que pagou 100 dólares (330 reais) pelo lote. Quando explodiu a guerra após o nascimento do Estado israelense, o prelado fugiu com seus manuscritos aos Estados Unidos via Beirute. Lá os colocou inicialmente à venda por um milhão de dólares (3,3 milhões de reais), mas ninguém os comprou. "Sua antiguidade não estava clara, a soma era muito elevada e o medo de que fossem exigidos por Israel ou pelos palestinos atrapalhava a venda", diz Adolfo Roitman, Diretor do Santuário do Livro do Museu de Israel.

Por fim o arcebispo colocou um anúncio no Wall Street Journal diminuindo o preço e o arqueólogo Yigael Yadin os comprou secretamente para o Estado de Israel por 250.000 dólares (825.000 reais), uma compra que o primeiro-ministro israelense Moshe Sharett anunciou em fevereiro de 1955.













O Museu de Israel desvela fragmento desconhecido dos Rollos do Mar Morrido



















Fragmento do 'Gênesis apócrifo', que pode ser visto pela primeira vez desde sua descoberta em 1947 no Santuário do Livro de Jerusalém.

sábado, 23 de novembro de 2019

Herança de Assis Brasil, castelo sofre com abandono

Tombado pelo patrimônio histórico, imóvel de 44 cômodos está fechado desde 2017, quando uma de suas bisnetas, Lydia Assis Brasil, mudou-se da propriedade por ser impossível mantê-la sozinha

Em 24 de junho de 1912, o político Joaquim Francisco de Assis Brasil inaugurou o castelo de Pedras Altas, nas planícies desoladas da zona sul do Estado. Erguida com pedras de granito rosado gaúchas e talhada por canteiros espanhóis, a fortaleza de linhas medievais esculpiu a filosofia de seu dono. O diplomata de São Gabriel pretendia demonstrar ser possível viver no campo sem embrutecer.

Na vereda que leva ao imóvel, mandou esculpir os versos “Bem-vindo à mansão que encerra / a dura lida e doce calma / o arado que educa a terra / o livro que amanha a alma”, de sua autoria. Dentro das torres e ameias, reuniu o maior acervo cultural-familiar do Rio Grande do Sul. Assis Brasil montou uma biblioteca de 15 mil volumes, entre clássicos em inglês, francês e latim. Pretendia transformá-la em museu público, onde os moradores da região teriam acesso a conhecimento e cultura.

Mais de um século depois, o sonho caiu no abandono. Tombado pelo patrimônio histórico, o castelo de 44 cômodos está fechado desde 2017, quando uma das bisnetas, Lydia de Assis Brasil, 65 anos, mudou-se da propriedade por ser impossível mantê-la sozinha. Hoje, vazamentos comprometem a mobília importada de Nova York e Paris, a umidade deteriora obras como os 22 volumes da enciclopédia de Diderot e D’Alambert, de 1751, e criminosos dizimam o valioso acervo, considerado uma fragmento da história gaúcha.

O imóvel resistiu à Revolução de 1923, quando chimangos invadiram a fortaleza de Assis Brasil, líder dos maragatos. Enquanto as grades oxidam e a tinta das portas descascam, a estrutura corre o risco de ceder ao desamparo. Três arrombamentos foram registrados na polícia de Pedras Altas, município de 2 mil habitantes à sombra do castelo, nos últimos dois anos. No primeiro, em julho de 2017, invasores violaram a capela e as lápides do cemitério de Boa Viagem, onde repousam Assis Brasil e a segunda esposa, Lydia. Levaram dois vasos de terracota e um canhão de ferro.

Em fevereiro deste ano, bandoleiros entraram por uma das janelas do segundo piso e reviraram o mobiliário, danificando uma espada de marfim, presente de um imperador chinês ao diplomata. Saíram pela porta da frente levando um conjunto de medalhas, um relógio de cabeceira, uma caixa de madeira com tampa de cristal, um porta-garrafa de prata e uma champanhe de 1884 com as iniciais de Assis Brasil.  Quatro meses depois, arrombaram três janelas, mas nada furtaram.

Inventário

Os familiares discutem uma maneira de preservar a herança há duas décadas, mas sem consenso. Depois da morte de Assis Brasil, em 1938, e de sua esposa, em 1973, o castelo e o seu entorno, uma fazenda de 300 hectares, foram partilhados entre os 12 filhos. Hoje, nenhum está vivo. O mais recente inventário tem 14 herdeiros, entre oito netos e seis bisnetos.

– A família está unida, interessada em tomar uma atitude positiva pela restauração de Pedras Altas, que está em um estado muito grave. O maior problema é financeiro, por ser muito difícil todos contribuírem – diz uma das netas, Maria Cecília de Assis Brasil Mendes, 78 anos.

Preocupados com um inquérito instaurado pelo Ministério Público do Estado por conta do comprometimento da estrutura, herdeiros se reuniram na última terça-feira na sede da Secretaria da Cultura do Estado, na Capital. O encontro foi convocado em um grupo de WhatsApp criado pela advogada Suzana de Assis Brasil Mendes, 51 anos, filha de Maria Cecília. Ela quer ressuscitar os planos do bisavô de constituir um museu: 

– A ideia veio para prestigiá-lo, porque ele fez parte da história do Rio Grande do Sul. Osvaldo Aranha, Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros… Todos têm museus. Por que Assis Brasil não pode ter um também? 

Propriedade privada apesar do interesse público, o castelo precisa ser recuperado e mantido pelos herdeiros. O plano de criar um museu popular esbarra na crise financeira. Falido, o Estado mal consegue dar conta dos seus nove museus, alerta o diretor de Memória e Patrimônio da secretaria, Eduardo Hahn:

– Como a família não entrou em consenso sobre o que fazer com a propriedade, sempre se encontra bloqueio nos processos de recuperação do acervo. O Estado tem responsabilidade, pelo tombamento, mas existe uma limite por ele ser privado e ter tantos herdeiros.

Ao fim do encontro, os descendentes decidiram pela assinatura de um documento único para dar um destino ao castelo, uma vez que a “diversidade” de opiniões sempre foi um entrave no deslanche do processo. Os Assis Brasil querem procurar um corretor especializado em bens históricos em uma nova tentativa de alienação do imóvel, frustrada há quatro anos.

– Hoje, toda a família concorda com a venda, mas entregar para qualquer pessoa é um risco. 

Há uma fortuna em patrimônio mobiliário ali dentro – adverte o advogado Rafael das Neves Medeiros, representante de uma parte dos herdeiros.

Fortaleza inabitável e difícil de vender

Tida como guardiã do legado do avô, Lydia de Assis Brasil tomou conta do castelo durante 15 anos. Para cuidar do acervo histórico, morou sozinha no imóvel, na singular companhia de itens como um relógio que pertenceu a Bento Gonçalves, um biombo de couro assinado por Osvaldo Aranha e Luiz Carlos Prestes e uma fotografia em que Assis Brasil, exímio atirador, aparece mirando uma maçã na cabeça de Santos Dumont.

A pecuarista também recepcionou turistas, entre gaúchos, norte-americanos e europeus. Promovia visitas que tinham início no hall, passando pelas salas de piano e jantar, pela biblioteca e pelo depósito, onde ainda está um Ford 29 modelo A. Por R$ 18, o passeio incluía chá no jardim cercado de ciprestes e eucaliptos plantados pelo avô.

As intempéries, contudo, passaram a tornar o prédio inabitável. Em 2016, um projeto de cobertura provisória para afastar a umidade foi orçado em R$ 300 mil. Meses depois, um temporal derrubou duas árvores, bloqueando as estradas de acesso ao imóvel. Há dois anos, ela decidiu se mudar.

Atualmente, Lydia mora com uma das duas filhas na Estância do Cerro, fazenda a seis quilômetros do castelo, também em Pedras Altas. Ocupa-se da ordenha de leite das vacas criadas na solidão dos campos. Moradores a descrevem como uma senhora educada que invariavelmente usa botas de goma. Procurada em sua casa, não quis dar entrevistas. 

Segundo o reduzido círculo de amigos e parentes com quem mantém contato, está ressentida pelo abandono da herança de Assis Brasil e pelo desentendimento da família. Lydia empenhou-se em elaborar um projeto cultural na área, mas nunca obteve o consentimento dos parentes. Em uma das tentativas, trabalhou com Beatriz Araujo, hoje secretária estadual da Cultura, e Cândida Morales, produtora paulista.

– Estabeleci uma ligação afetiva por ver uma mulher praticamente sozinha naquela batalha pela preservação da memória – conta Beatriz.

O castelo foi anunciado no mercado imobiliário em 2014, ao custo de R$ 15 milhões. A oferta incluía a fazenda e sua estrutura para pecuária e agricultura, um chalé, o castelo e os milhares de itens alocados dentro dele.

O imóvel foi oferecido a um público selecionado. Entre eles, o apresentador Galvão Bueno, proprietário de uma fazenda em Candiota, e Zuleika Torrealba, controladora do Grupo Libra, que ergueu um império em Bagé, à vinícola Casa Vadulga e ao diretor de TV Jayme Monjardim. Boatos à época, o interesse dos jogadores Ronaldo Nazário e Ronaldinho Gaúcho são negados por uma das corretoras, Vera Barbosa.

– O valor e o custo da reforma, que eram altos, trancaram as vendas – recorda.

A alienação mais próxima de se concretizar foi em 2015, quando os herdeiros aceitaram reduzir o valor para R$ 8,5 milhões para vendê-lo a uma ONG chamada Associação Missão África, de Moçambique

Os contatos se deram unicamente por telefone com a suposta presidente da entidade. Uma minuta de contrato chegou a ser assinada, mas foi cancelada depois que uma pesquisa pelo endereço da organização resultou em um casebre em uma vila. Lydia liderou a resistência e conseguiu arrefecer o negócio.

Exigências

Pelo fato do castelo e de seu mobiliário serem tombados a nível estadual e federal, o comprador tem de estar comprometido em recuperar e conservar todo o acervo histórico. Além disso, a carência de infraestrutura na cidade se tornou um obstáculo, segundo o advogado Rafael das Neves Medeiros, que atende parte da família.

– Representantes de uma vinícola da Serra me falaram: “Doutor, queremos comprar a granja, mas precisamos de acesso asfáltico e aeroporto”. Bom, isso a família não pode oferecer – observa.

A imponente fortaleza parece deslocada do município com ares de vila onde está instalada. Pedras Altas emancipou-se de Pinheiro Machado e Herval em 1999, mas permaneceu isolado do mapa gaúcho. Para acessá-lo, é preciso percorrer 32 quilômetros da RS-608, estrada de chão batido que nunca teve a promessa de asfalto cumprida. Motoristas têm optado pelo caminho mais longo, passando pela pavimentada BR-293.

Assim, os moradores do município rural nunca viram chegar o progresso anunciado pelo visionário Assis Brasil ou pelo potencial de negócios representado pela abertura de um empreendimento turístico. Seguem à espera do desenvolvimento, ressente-se o secretário de Planejamento do município, Amarildo Borges: 

– O castelo é a razão de Pedras Altas existir. Mas se tornou a cidade do castelo que nunca pode ser visitado.

Ministério Público preserva documentos

Às vésperas da aposentadoria, o promotor de Bagé Everton Luís Resmini Meneses acelerou um inquérito estacionado na comarca de Pinheiro Machado para salvar os documentos guardados em Pedras Altas. Em uma ação civil pública de 28 páginas, escreveu que “as precárias condições estruturais do castelo” tornaram urgente a retirada do acervo, antes que se perdesse e “maculasse parte da história gaúcha e brasileira ainda desconhecida”.

A Justiça concedeu uma liminar em junho de 2018, quando se iniciou um acordo entre seis órgãos para recuperar os itens. O processo colocou na mesma mesa representantes do Ministério Público do Estado e Federal, além dos Institutos do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Estadual, da Secretaria da Cultura e da UFGRS

Munida de máscaras e luvas cirúrgicas, uma equipe de pesquisadores foi a Pedras Altas, em janeiro, para reunir um número ainda incerto de documentos – estima-se que chegue a 12 mil. Sessenta caixas foram acomodadas em caminhão-baú para que se mexessem o mínimo possível. Pelas mãos de quem passou, o conteúdo até então desconhecido impressionou.

– Tem toda a atuação de Assis Brasil como político, desde o alvorecer da República até a sua morte, passando por momentos fundamentais da história do Rio Grande do Sul e do Brasil –conta a historiadora do Ministério Público, Evelise Zimmes Neves, aposentada desde abril.

Entre eles, rascunhos do Pacto de Pedras Altas (tratado de paz que pôs fim à Revolução de 1923, assinado entre os paredões do castelo), cartas do ex-presidente Getúlio Vargas (de quem Assis Brasil foi ministro da Agricultura) e fotos ao lado de Luiz Carlos Prestes, líder da Coluna Prestes. E há livros de registros do gado das raças devon e jersey, introduzidas por ele no Estado.

Tratamento

Os documentos estão arquivados no Memorial do Ministério Público, no Centro Histórico da Capital, aguardando tratamento. O acordo prevê a classificação do material e o tratamento técnico para que não se apague – a leitura de alguns está prejudicada por manchas e pelo esmaecimento da tinta. Um dia, quando o castelo for recuperado, serão devolvidos à granja.

À frente do processo, o coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente, Daniel Martini, tem buscado recursos de um fundo do órgão para a contratação de bibliotecários e historiadores. Somente uma primeira etapa foi orçada em R$ 400 mil.

– Temos de verificar qual parte da história está oculta nesses documentos, mas esbarramos na dificuldade de orçamento público. Num momento em que o Estado está parcelando salários, precisamos de cautela e responsabilidade para a busca de recursos – alerta Martini.

Também há processos sobre o restauro do imóvel no Ministério Público de Pinheiro Machado e no Ministério Público Federal. Já a Polícia Civil de Pinheiro Machado abriu um inquérito sobre os furtos à propriedade. 

Os agentes cumpriram um mandado de busca na casa de um suspeito, mas não encontraram nenhum dos itens saqueados.

Quem foi Joaquim Francisco de Assis Brasil

- Parlamentar e diplomata, foi um dos principais personagens históricos do Rio Grande do Sul. 
- Fundador do Partido Liberal e líder da Revolução de 1923, também é considerado o patrono da pecuária gaúcha.
- Nasceu em 29 de julho de 1857, na Estância de São Gonçalo, em São Gabriel, e morreu em 24 de dezembro de 1938, na Granja de Pedras Altas. 
- O político criou o Partido Republicano no Rio Grande do Sul com seu cunhado, Júlio de Castilhos. 
- Depois de fundada a República, partiu para a carreira diplomática, sendo embaixador em Buenos Aires, Portugal e Estados Unidos. 
- Em 1922, foi candidato ao governo do Estado contra Borges de Medeiros. Diante da vitória do adversário, liderou o movimento armado de 1923 e também articulou o Tratado de Pedras Altas, colocando um fim à guerra.

A herança histórica de Assis Brasil

Joaquim Francisco de Assis Brasil adquiriu as terras de 170 hectares onde mais tarde instalaria a Granja de Pedras Altas em 7 de maio de 1904. Inicialmente, a família morou em um casa, chamada de Cottage (chalé, em inglês), até que o castelo fosse concluído. Naquela fazenda, o político queria mostrar que o homem do campo pode ser culto, arando a terra pela manhã e lendo um exemplar de Os Sertões, autografado por Euclides da Cunha, à tarde.

O castelo levou oito anos para ser concluído, sendo erguido por três operários espanhóis. Foi inaugurado em 24 de junho de 1912, em homenagem ao aniversário de morte de Assis Brasil, pai do intelectual. De estilo medieval, o imóvel tem duas torres que representam dois de seus filhos, Cecília e Francisco. Pelo castelo, o político declarou o amor à segunda esposa, Lydia. Ele pretendia dar conforto à companheira, filha de um conde português.

Um dos momentos mais memoráveis do imóvel ocorreu naquele ano, quando chimangos e maragatos assinaram o Tratado de Pedras Altas no interior dos paredões de pedra. O documento pôs fim à Revolução de 1923, guerra que opôs os partidários de Borges de Medeiros e os aliados de Assis Brasil.

O patriarca morreu em 1938, aos 81 anos, motivando o primeiro inventário da granja. Em 1973, ocorreu a segunda partilha, após a morte de Lydia. Assis Brasil teve quatro filhos do primeiro casamento e oito do segundo, sendo que somente quatro deles tiveram descendentes. Dos 15 netos, 10 ainda vivem. De acordo com o mais recente inventário, 14 familiares são herdeiros da área, entre netos e bisnetos.

Na década de 1990, pesquisadores da Assembleia Legislativa e da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) deram início, pela primeira vez, à catalogação do acervo. Porém, os trabalhos nunca foram concluídos. Ainda hoje, o conteúdo de todo o material histórico é desconhecido. Mas se sabe que itens desapareceram, como a caneta com a qual foi assinado o Tratado de Pedras Altas.

Depois da morte do patriarca, herdeiros moraram no castelo durante quase 80 anos. Entre eles, as filhas Joaquina e Lydia, a neta homônima Lydia e o bisneto Rodrigo. Os familiares resistiram ao tombamento histórico da propriedade, temendo que o imóvel fosse abandonado e que o acervo acabasse em Brasília. Em setembro de 1999, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) tombou a granja, incluindo o castelo e a estrutura rural, como potreiros e leitaria.

Uma década depois, em dezembro de 2009, o Iphae também tombou os bens móveis do castelo. Entre eles, todo mobiliário, esculturas, lustres, louças, pratarias, quadros, tapetes, livros e documentos.

A nível federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) promoveu o tombamento emergencial da estância. Trata-se de um tombamento preventivo, que depende de estudos para justificarem a medida em caráter definitivo. Responsável pela decisão, o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural ainda não analisou o processo de Pedras Altas. Também em 2016, o Ministério Público do Estado destravou um inquérito para salvar o acervo.

Última moradora da fortaleza, Lydia Assis Brasil mudou-se para uma propriedade rural a seis quilômetros do castelo porque não conseguia mais manter a estrutura e realizar os consertos necessários. Desde então, a propriedade, que era aberta para visitas guiadas pela herdeira, está fechada. Desde então, foi alvo de ao menos três arrombamentos - há suspeita de que nem todos os casos tenham sido registrados na polícia.

Em parceria com Ministério Público Federal, Iphan, Iphae, Secretaria da Cultura e UFRGS, o Ministério Público do Estado assinou um acordo para retirada e análise dos documentos do castelo. A medida foi possível graças a uma liminar concedida pela Justiça, uma vez que os herdeiros não se manifestaram e os órgãos identificou o "perigo iminente de dano e extravio de parte da história gaúcha e brasileira".

Os documentos foram recolhidos por uma equipe de historiadores e armazenados no Memorial do Ministério Público, no centro histórico de Porto Alegre, em janeiro. O Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente tem buscado uma verba por meio de um fundo do próprio órgão para catalogar os itens. Os herdeiros, após divergências familiares que emperraram o destino de Pedras Altas, decidiram pela assinatura de um documento para uma nova tentativa de vender a propriedade.





















Fortaleza foi erguida com pedras de granito rosado gaúchas e talhada por canteiros espanhóis
Fernando Gomes / Agencia RBS
Biblioteca reúne 15 mil volumes, entre clássicos em inglês, francês e latim
Nauro Júnior / Agencia RBS
Parte dos registros históricos contidos no castelo
Fernando Gomes / Agencia RBS


















Parte dos registros históricos contidos no castelo
Fernando Gomes / Agencia RBS


















Parte dos registros históricos contidos no castelo
Elis Regina Cartaxo / Divulgação

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Fóssil de um dos mais antigos dinossauros predadores do mundo é encontrado no RS

Pesquisadores da UFSM conduziram estudo que revelou esqueleto mais completo do tipo já encontrado no Brasil

Pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e da Universidade de São Paulo (USP) publicaram estudo em que apresentam uma nova espécie de dinossauro predador, o Gnathovorax cabreirai. Originário do período Triássico (com aproximadamente 230 milhões de anos), ele é um dos mais antigos já encontrados no mundo.

O fóssil, descoberto na região da Quarta Colônia Italiana de São João do Polêsine, região central do Estado, é o mais bem preservado do tipo já encontrado no Brasil. Bastante completo, o esqueleto revela que o animal tinha dentes pontiagudos e munidos de serrilhas, assim como garras longas nos dedos das mãos, que ajudavam a capturar as presas.

O grau de preservação permitiu que, com o uso de modernas técnicas de tomografia computadorizada, os pesquisadores reconstruíssem parte da morfologia do cérebro do animal. Os detalhes anatômicos do cérebro revelaram características que são comuns em répteis predadores, como regiões bem desenvolvidas relacionadas ao equilíbrio e à visão. A combinação dessas feições indica que este animal foi um predador ativo no ambiente em que viveu. O nome Gnathovorax significa “mandíbulas vorazes”, enquanto que cabreirai faz referência ao paleontólogo Sérgio Furtado Cabreira, responsável pela descoberta do esqueleto em 2014.

O estudo, publicado no periódico científico internacional PeerJ, foi conduzido pelo egresso do curso de Pós-Graduação em Biodiversidade Animal da UFSM, Cristian Pereira Pacheco, pelos paleontólogos da UFSM Rodrigo Temp Müller, Leonardo Kerber, Flávio A. Pretto e Sérgio Dias da Silva, e pelo paleontólogo da USP, Max Cardoso Langer. O responsável por realizar a reconstrução do Gnathovorax cabreirai em vida foi o paleoartista Márcio L. Castro.

Maior dinossauro brasileiro de seu tempo

Os dinossauros dominaram a Terra durante quase toda a Era Mesozoica (entre aproximadamente 250 e 65 milhões de anos atrás). Dentre as inúmeras espécies que viveram durante este momento, muita atenção é dada aos predadores de grande porte, como o norte-americano Tyrannosaurus rex, famoso no cinema. Assim como ele, os dinossauros predadores mais conhecidos são encontrados em rochas do Período Jurássico ou Cretáceo (entre 201 e 65 milhões de anos). Já no primeiro período da Era Mesozoica, o Triássico, os dinossauros carnívoros eram raros, menores e pouco conhecidos.

O Gnathovorax chegava a medir 3 metros de comprimento e, apesar de ser menor que os famosos predadores do Jurássico ou Cretáceo, era um dos maiores carnívoros do ambiente em que ele vivia, e seguramente o maior dinossauro brasileiro de seu tempo. Outros dinossauros que conviveram com ele, como o Buriolestes schultzi, mediam cerca de 1,5 metros de comprimento. 

Esqueleto completo ficará no Brasil

A análise de grau de parentesco realizada no estudo indicou que o novo dinossauro foi membro de um grupo chamado Herrerasauridae, sendo parente de alguns dinossauros de idade próxima descobertos no Brasil e na Argentina. Todavia, o esqueleto do Gnathovorax cabreirai é o mais bem preservado já descoberto para dinossauros deste grupo. O último herrerassaurídeo (o Staurikosaurus pricei) foi descoberto no Brasil em 1936 e seu esqueleto está hoje em Harvard, nos Estados Unidos.

A nova descoberta, no entanto, ficará em solo brasileiro. Isso permitirá que aqueles que tiverem interesse em conhecer o fóssil de um dinossauro herrerassaurídeo possam visitá-lo no Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia (CAPPA/UFSM), em São João do Polêsine (RS).












Ilustração da espécie que tem mais de 230 milhões de anos