sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

MAC Niterói é eleito uma das 10 obras mais influentes dos últimos 50 anos

Museu de Arte Contemporânea de Niterói, uma das mais relevantes obras do arquiteto e urbanista Oscar Niemeyer, foi apontado como uma das dez obras mais influentes das últimas cinco décadas.

O Instituto de Gerenciamento de Projetos – ou Project Management Institute (PMI) – uma organização global sediada na Pensilvânia, nos Estados Unidos, elegeu os 50 projetos mais influentes do mundo em diversas categorias. Além da lista geral, a organização, presente em mais de 160 países, selecionou ainda os 10 mais impactantes e inspiradoras em algumas áreas, como a arquitetura, a biologia, a governança, entre outros.
Veja quais foram os selecionados e porque foram considerados referências de arquitetura a impactar outras obras ao redor do mundo.

Museu de Arte Contemporânea de Niterói

A estrutura concebida pelo brasileiro Oscar Niemeyer para o museu que foi escolhida como o 10ª projeto de arquitetura mais influentes dos últimos 50 anos é uma das obras que carrega a assinatura dos formatos curvos frequentemente empregadas pelo arquiteto. O museu da cidade carioca foi inaugurado em 1996 e se tornou um marco arquitetônico da cidade, onde continua consolidado como atração turística também pelo seu formato de disco e pela estrutura externa no formato de olho.

O edifício mais alto da União Europeia é um ícone de arquitetura da capital inglesa. Inspirados nas torres das muitas igrejas de Londres, o The Shard empregou métodos pioneiros de engenharia, entre eles a construção inversa, do topo para a base, uma vez que a base do prédio foi escavada quando seu núcleo já estava em construção.

O que esperar da sede de uma empresa que se tornou referência em tecnologia e inovação no mundo inteiro? Não à toa a “casa” da Apple entra para a lista das grandes referências arquitetônicas da atualidade, com seu formato circular que lembra o de uma nave espacial. Um dos prédios mais caros do mundo, o Apple Park custou 4 bilhões de dólares (quase 15 bilhões de reais) e incluiu características como as janelas customizadas criadas para serem as maiores folhas de vidro curvas do mundo e o uso de energia renovável em 100% do espaço.

O prédio mais alto da China e o segundo mais alto do mundo, a Shanghai Tower é considerado uma estrutura brilhante por suas características sustentáveis, um dos aspectos nos quais mais se destaca. Com turbinas que ajudam a redirecionar as forças do vento, a torre tem uma estrutura curva que ajuda a garantir a estabilidade que a torre de 632 metros e 128 andares demanda.

oncebido por um dos mais conceituados estúdios de arquitetura da atualidade, o Heatherwick Studio, a estrutura que abriga o museu Zeitz, na Cidade do Cabo, explora técnicas inovadoras de corte de concreto em sua edificação, ao mesmo tempo em que respeita a estrutura tradicional do prédio que ocupava o espaço anteriormente.

Consideradas um símbolo do papel que a Malásia assumiu na economia global nos últimos anos, as chamadas Torres Gêmeas Petronas são um marco na paisagem urbana da capital do país. Sede local de empresas com a IBM, a Microsoft, a Reuters, a Al-Jazeera e a Bloomberg, os arranha-céus têm ainda uma famosa passarela entre as duas torres de 88 andares e 452 metros de altura, inauguradas em 1998.

Renzo Piano e Richard Rogers são os dois grandes nomes responsáveis pela assinatura do Centre Pompidou. Desde sua inauguração, em 1977, a estrutura pioneira construída em Paris tem atraído centenas de milhões de visitantes, que buscam acompanhar não apenas as atrações internas, mas também a estrutura imponente e inovadora. Desenhado como um diagrama espacial em evolução, o prédio tem dez andares com 7500 m² cada, com uma estrutura gigantesca que inclui cinemas, salas para exposições temporárias  e permanentes, teatro, área para performance, uma biblioteca para leitura e uma para pesquisa. Com toneladas de aço e vidro em sua estrutura, o edifício é pioneiro especialmente no que diz respeito à flexibilidade, uma vez que as salas são versáteis e de fácil liberação de espaço.

Mais do que um museu, o Guggenheim Bilbao foi uma verdadeira marca no desenvolvimento econômico e industrial da cidade de Bilbao, na Espanha. Com projeto do arquiteto canadense Frank Gehry, a construção foi tão impactante que gerou o chamado “Efeito Bilbao”, que se refere ao efeito de revitalização urbana criado quando uma grande obra arquitetônica destinada à arte e à cultura ajuda a ressignificar uma região. Já se passaram quase 25 anos desde a inauguração do Guggenheim Bilbao, mas a obra continua sendo uma referência e um dos destinos mais visitados na Espanha.

Um dos mais recentes locais considerados Patrimônio da Humanidade pela Unesco e atualmente o ponto turístico mais visitado da Austrália, Casa de Ópera de Sidney é uma das obras mais emblemáticas da arquitetura na atualidade. Com alguns problemas durante a sua construção que atrasaram a entrega da obra e considerado uma construção com extremo sobrepreço, ainda assim a Opera House se tornou referência de arquitetura, por se destacar nos quesitos de criatividade e inovação no projeto. Assinado pelo arquiteto dinamarquês Jørn Utzon, se tornou referência pelo desenho das “conchas” que formam o teto e a influência acústica e estética que exerceram sobre obras que vieram nas décadas seguintes à sua inauguração, em 1973.

O projeto mais influente da arquitetura não poderia deixar de ser um arranha-céu de Dubai, nos Emirados Árabes unidos. Símbolo da arquitetura contemporânea do Oriente Médio, o Burj Khalifa é o prédio mais alto do mundo, com 828 metros de altura e 163 andares. Inaugurado em janeiro de 2004, o edifício é referência não apenas pelo seu formato, mas também pelo sofisticado sistema de estabilidade, que garante sua firmeza ainda que os ventos estejam a velocidades altíssimas em Dubai.

















Museu de Arte Contemporânea de Niterói

















The Shard
















Apple Park

























Shangai Tower




















Museu Zeitz de Arte Contemporânea Africana

























Petronas Twin Towers


















Centro Georges Pompidou


















Museu Guggenheim Bilbao


















Sydney Opera House


















Burj Khalifa

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Da Guerra dos Farrapos à ditadura, Ilha do Presídio sediou capítulos importantes da História

Pequena porção de terra entre Porto Alegre e Guaíba abrigou presos políticos e fugas espetaculares, até sucumbir ao abandono nos últimos anos

No seu aniversário de 28 anos, 13 de maio de 1970, Paulo de Tarso Carneiro desfilou pelo corredor do Presídio Central, devidamente algemado, enquanto os apenados cantavam-lhe os Parabéns.

Naquela manhã, haviam ordenado que recolhesse suas coisas e deixasse a cela. Da penitenciária, foi levado até um trapiche na Vila Assunção, zona sul de Porto Alegre, e embarcado em uma lancha com mais três ou quatro dezenas de presos. Entre eles havia personagens que alcançariam projeção no futuro, como Fernando Pimentel, governador de Minas Gerais entre 2015 e 2018, e Rui Falcão, presidente do Partido dos Trabalhadores de 2011 a 2017.

O destino da barca era uma ilha de cem metros de comprimento e 60 metros de largura, a dois quilômetros da costa, já no município de Guaíba. Por causa das alvas rochas que a formavam, fora batizada oficialmente de Ilha das Pedras Brancas. Por causa da função dos dois pavilhões que se erguiam em meio à vegetação, no entanto, todo mundo a conheceu por outro nome: Ilha do Presídio.

No desembarque, Carneiro viu dezenas de homens serem retirados do cárcere e colocados na lancha. Eram presos comuns, que seriam substituídos pelos presos políticos. Estavam maltrapilhos e alguns se encontravam tão doentes e feridos que precisaram ser carregados.

– Aquela situação de miséria gerou pavor em nós – relata Carneiro, hoje com 77 anos.

Depois que a barca zarpou, os recém-chegados ingressaram no prédio. O cheiro era tão nauseabundo que tiveram de retirar as camisas para tapar o nariz. As paredes estavam cobertas de fezes, de sangue, de todo tipo de sujidade. O piso era um lago de água fétida. Não havia camas. As latrinas resumiam-se a buracos no chão.

Excetuando algumas breves saídas para interrogatório e tortura no Palácio da Polícia, Carneiro permaneceria encarcerado na ilha de pedra no meio do Guaíba pelos 11 meses seguintes.

– Todos os dias, junto com a esperança de sair, estava presente a angústia da ausência de liberdade, do pouco contato com familiares e de saber que outros estavam sendo torturados e mortos lá fora – conta.

O período como presídio político, durante a ditadura militar, é o capítulo mais conhecido da história da ilha, mas ela teve várias outras funções ao longo do tempo.

Na Guerra dos Farrapos (1835-1845), funcionou como entreposto farroupilha para o transporte entre Guaíba e Porto Alegre e como ponto de observação para as tropas imperiais. Entre 1857 e 1860, o Exército construiu prédios para servir de depósito de pólvora, uso que se prolongou até 1930.

No meio desse período, em 1902, um grupo de atletas que remava no Guaíba foi surpreendido por um violento temporal. Duas embarcações naufragaram e quatro pessoas morreram afogadas, mas os outros conseguiram se safar porque nadaram até a ilha.

Em 1940, depois da saída dos militares, o espaço passou à administração estadual, acolhendo um laboratório de pesquisas sobre peste suína.

A conversão em penitenciária veio em 1956, como prisão de alta segurança, mas com direito a uma fuga espetacular, que mobilizou a imaginação dos gaúchos: em 1958, o ladrão Julio de Castilhos Pitinelli montou em dois panelões usados para fazer a comida dos detentos e navegou assim por 15 horas, até aportar na Ilha da Pintada – onde voltou a ser capturado após umas poucas horas de liberdade.

Depois do golpe de 1964, chegaram os presos políticos. Mais tarde, os mendigos e os párias do sistema prisional. A função de cárcere só foi abandonada definitivamente em 1983.

Desde então, a ilha de tantas histórias aguarda para ocupar de novo um lugar na História. Embora tenha sido tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) em 2014, isso não garantiu proteção. Está desocupada e esquecida há quase quatro décadas. Nesse período, como comprovou uma visita recente de GaúchaZH, as importantes edificações lá existentes tornaram-se ruínas. Cobertos de pichações, os dois edifícios do presídio e as duas guaritas nas extremidades da ilha são esqueletos de concreto submetidos a saques brutais. Pisos, tijolos e telhados desapareceram. Até as pesadas grades de metal das celas e das janelas foram cortadas e levadas. As que ainda estão lá, em uma última janela, foram instaladas recentemente, para a gravação de um filme. São cenografia.

– Tudo o que podia ser roubado foi roubado. A ilha ficou um tempo abandonada. Está abandonada, na verdade – afirma Eduardo Raguse, coordenador da Amigos do Meio Ambiente (AMA), entidade ambientalista de Guaíba que tem promovido visitas guiadas e que desenvolve projetos para revitalizar o local.

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2020/02/da-guerra-dos-farrapos-a-ditadura-ilha-do-presidio-sediou-capitulos-importantes-da-historia-ck6mcfmvc0h1g01mvib48sddh.html


















Uma visão geral da ilha, com a zona sul da capital gaúcha ao fundoJefferson Botega / Agencia RBS

Com construções em ruínas, Ilha do Presídio vive nova saga pela valorização do patrimônio no meio do Guaíba

Local hoje está em situação de abandono; últimas décadas da pequena porção de terra a dois quilômetros da zona sul de Porto Alegre guarda polêmicas e também promessas de revitalização

A história da Ilha das Pedras Brancas, ou Ilha do Presídio, no Guaíba, é recheada de episódios relevantes do passado, mas também de curiosos causos que entraram para o folclore popular – em um desses, em 1958, o ladrão Julio de Castilhos Pitinelli montou em dois panelões usados para fazer a comida dos detentos e navegou assim por 15 horas, até aportar na Ilha da Pintada, onde voltou a ser capturado.

Usada para o isolamento de presos políticos durante a ditadura militar, a ilha recebeu detentos no fim dos anos 1960. Entre as levas que chegaram ao local na década de 1970, estavam nomes como Raul Pont, futuro prefeito de Porto Alegre, e Carlos Araújo, que recebia no local visitas frequentes da mulher, a também militante Dilma Rousseff. Em 1973, o fluxo acabou. Naquele ano, o presídio foi desativado. Reportagens publicadas por Zero Hora na época revelam que o fechamento ocorreu de forma precipitada, em 16 de agosto, como consequência da morte de Eduardo Alves da Silva, ladrão de automóveis preso ilegalmente, que havia morrido por afogamento.

O pesquisador Bruno Silveira explica que, naquele momento, a ditadura já não via necessidade de ter um presídio político no local:

– Em 1973, o regime considerava que a luta armada estava derrotada.

Seis anos depois, o governo gaúcho anunciou que iria reabrir o presídio, para 40 detentos de alta periculosidade.

– Temos de proteger o cidadão honesto a qualquer preço e vamos reativar a Ilha do Presídio – afirmou o governador Amaral de Souza.

Durou pouco a nova fase da penitenciária. Reaberta em 1980, acumulou polêmicas. Em abril de 1981, ZH visitou o local e documentou as condições sub-humanas a que os 14 presos estavam submetidos. A ilha vinha sendo usada como castigo para apenados que tentavam fugir ou cometiam crimes dentro de outras penitenciárias. “A aparência de quem está dentro destas celas é a pior possível, e o lugar é úmido, cavernoso, feio demais”, relatava a reportagem. A comissão de direitos humanos da Assembleia Legislativa fez uma inspeção, e o governo do Estado admitiu a possibilidade de fechamento temporário. Depois começou uma série de fugas.

Em setembro, Jardelino de Barros e João Carlos Bender conseguiram escapar, após serem mandados consertar uma antena de rádio. Em julho de 1982, foi a vez de Elias dos Santos Paes, o Soneca, de 23 anos, e Ricardo Machado de Oliveira, colocarem à prova a fama de presídio inexpugnável. Os dois detentos eram responsáveis por cozinhar para os demais presos. Em um fim de dia, estavam na cozinha e notaram que dois guardas haviam deixado coletes salva-vidas para secar sobre um muro. Apanharam os coletes e jogaram-se no Guaíba em uma noite de vento e chuva.

– Comemos bastante para não faltar energias e, à uma hora da madrugada, a gente caiu na água de calção e camisa, com os coletes nas costas. Nadamos uns 500 metros e escutamos tiros. Sentimos que já nos procuravam e que a coisa estava feia, porque ventava, as ondas cresciam e a gente podia morrer – contou Paes a ZH, meses depois.

Lanchas dos bombeiros foram enviadas, com faróis acesos, para as buscas. Chegaram a passar muito perto dos fugitivos, mas não os viram. Eles miravam o Estádio Beira-Rio, mas nadavam, nadavam e nunca viam terra. Depois de um tempo, se separaram por causa da correnteza.

– Nunca mais nos encontramos, mas acho que ele também conseguiu chegar na terra como eu – disse Soneca.

O jovem presidiário, receoso de ser pego se aportasse na região central, conseguiu nadar até a Ilha da Pintada. Exausto, descansou à beira do Guaíba, esperou as roupas secarem e apanhou um ônibus para o Centro. Foi preso cinco meses depois, após uma sequência de assaltos. Explicou assim a vida na ilha:

– Lá eu podia caminhar à vontade, mas é uma liberdade sem pé nem cabeça, porque a gente só vê pedras e água.

Bem mais grave foi o caso da fuga do traficante João Carlos Faleiro e do assaltante argentino Hector Thomas, que serraram as grades da cela, pularam para o pátio e saíram a nado na noite tempestuosa de 21 de setembro de 1982. Morreram os dois afogados. Pouco antes, o juiz Montes Lopes navegava pelo Guaíba com seu veleiro quando, ao aproximar-se da ilha, teve o casco da embarcação estraçalhado pelos guardas posicionados nas guaritas.

A ilha hoje

A sucessão de situações delicadas gerou reportagens, investigações, sindicâncias e questionamentos sobre a suposta alta segurança garantida pelo presídio. Enfim, em 4 abril de 1983, o governador Jair Soares fechou a prisão em definitivo.

Dias depois, a Secretaria da Segurança entregou o controle da ilha para a Secretaria de Turismo – e assim começou uma nova saga, que já dura quase quatro décadas, marcada pelas promessas de revitalização e transformação do local em centro de visitação. Em um primeiro momento, a Companhia Rio-Grandense de Turismo (CRTur) planejou erigir na ilha uma imensa estátua de Nossa Senhora Aparecida. Mais tarde, lançou um projeto com previsão de churrasqueiras, bar e museu.

Em 2012, a prefeitura de Guaíba, que recebeu concessão para administrar a ilha, apresentou um projeto de R$ 3 milhões, que incluía a restauração dos prédios para abrigar memoriais com a história da ilha, auditórios para eventos e uma lanchonete. A atual administração informou, em nota, também ter um projeto, em fase de finalização: “Umas das ideias é implantar um espetáculo de som e luz, com embarcações ancoradas no entorno da ilha”.

A cada dia que passa sem que esses projetos sejam colocados em prática, menos resta para recuperar. Resistem na ilha apenas carcaças maltratadas dos dois prédios e das duas guaritas.

Essa situação é lamentada por quem passou por lá. Bona Garcia e Paulo de Tarso Carneiro entendem que se trata de um descaso com a história e propõem um museu ou memorial sobre a ditadura militar, para que a repressão ocorrida no período não seja esquecida.

– O local está destruído. Dizem que são vândalos, mas vândalos não conseguem carregar grades de ferro do tamanho das que estavam lá dentro. São profissionais. Se possível, devia-se restaurar aquilo, deixando como era antes. Mas, como nenhum museu se sustenta sozinho, que fosse permitido às pessoas fazer turismo. É um local belíssimo – sugere Carneiro.

Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, acredita que a ilha é um ecossistema frágil e deve, por isso, ser poupada de visitantes. Propõe apenas a colocação de um marco, com uma inscrição do tipo: “Aqui estiveram presos brasileiros que lutaram pelo democracia”. A entidade que ele comanda também desenvolveu o projeto Marcas da Memória, que resultaria na instalação de uma placa, no Cais Mauá, com a lista dos militantes políticos que passaram pelo presídio. Ao longo dos anos, Krischke tem trabalhado em um levantamento de nomes, tarefa difícil, por causa da falta de registros oficiais. Em dezembro passado, ele chegou a 83 detentos.

– Acho que estamos quase no limite. O número não é muito maior do que isso. Do 82º ao 83º, fiquei um ano investigando – relata.

As principais iniciativas na ilha têm ficado a cargo da Amigos do Meio Ambiente (AMA), que firmou convênio com a prefeitura de Guaíba para promover ações educacionais. A entidade tem realizado mutirões de limpeza, instalação de placas informativas e visitas guiadas, que incluem aulas de História, geologia e ambiente. Para 2020, o projeto é realizar visitas todos os meses, cada vez enfocando um tema diferente. A AMA também está desenvolvendo um projeto, junto a arquitetos, para restaurar os prédios, criar um museu e oferecer um espaço para apresentações artísticas.

– Realizamos as visitas guiadas como forma de ocupação positiva, para evitar uma degradação maior e para criar uma cultura de visitas na ilha, sempre com muito cuidado e com a devida orientação. Nossa ideia é ressignificar esse espaço. Valorizar a história e transformar a ilha em lugar agradável para passar um dia e saber mais sobre a História e o ambiente – diz Eduardo Raguse, da AMA.

Por enquanto, as belezas da ilha estão ao alcance de poucos felizardos, como a gestora ambiental Marlene Vieira, 51 anos, possivelmente a pessoa que passou mais tempo no local desde que a penitenciária fechou. Ela sobe pedras com desenvoltura até alcançar as elevadas guaritas, se embrenha na mata que cresceu após o abandono, engatinha por vãos na rocha para aceder a praias recônditas, conhece cada trilha ou recanto.

Marlene e o marido moram em Guaíba, à beira do lago, defronte à ilha. Em minutos, conseguem chegar de barco. Autorizada pela prefeitura, ela levou muitas crianças para ações de educação ambiental. Também recolhe lixo e adverte visitantes descuidados. Às vezes, de casa, vê fumaça e corre à ilha, para apagar algum início de incêndio provocado por um churrasqueiro irresponsável. Quando a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz usou o espaço para uma série de encenações, chegou a morar lá, para zelar pelos equipamentos da trupe teatral, durante um total de três meses.

– Era maravilhoso. Acordava de manhã já com os passarinhos cantando. Daí eu saía para explorar. Comecei a conhecer os lugarzinhos onde ninguém ia. Desço, subo, sei onde ir. Tenho cada detalhe da ilha dentro da cabeça – orgulha-se.

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2020/02/com-construcoes-em-ruinas-ilha-do-presidio-vive-nova-saga-pela-valorizacao-do-patrimonio-no-meio-do-guaiba-ck6mcywg90h1o01mvwtmyc9fn.html

















Só restou o esqueleto do prédio erguido para ser depósito de pólvora que depois tornou local de detenção de presos políticosFernando Gomes / Agencia RBS


Uma imagem da cozinha do presídio, em 1983, com panelões semelhantes àqueles usados em uma de suas muitas tentativas de fugaJuan Carlos Gomez / Agencia RBS

"Desço, subo, sei onde ir. Tenho cada detalhe da ilha na cabeça", diz Marlene Vieira, gestora ambiental, sobre os meses em que morou na ilha em período de preparação de um espetáculo teatral
Fernando Gomes / Agencia RBS


Torre de vigilânciaFernando Gomes / Agencia RBS

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

As contradições e as lendas em torno de Sepé Tiaraju, o índio gaúcho em processo de canonização na Igreja

Herói indígena que tem canonização solicitada à Igreja Católica já teve homenagem vetada no Rio Grande do Sul.

A iniciativa de valorizar os espaços onde Sepé Tiaraju morreu e seus 1,5 mil companheiros foram massacrados, em 1756, surgiu 200 anos depois. Em 1955, o major do exército João Carlos Nobre da Veiga propôs ao governador Ildo Meneghetti levantar um monumento a Tiaraju na Sanga da Bica, perto do centro da cidade de São Gabriel, para lembrar o bicentenário da morte. “Sr. governador, creio que nada mais justo para o povo gaúcho do que reverenciar, na pessoa do índio Sepé, seu passado de lutas, de glórias e de sacrifícios”, peticionou.

Meneghetti consultou o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS). Em outubro, em sessão ordinária, os sócios da entidade aprovaram um parecer que rejeitava a homenagem. O texto, assinado por Afonso Guerreira Lima, Othelo Rosa e Moysés Vellinho, rechaçava a “brasilidade” de Tiaraju e recusava-lhe o título de herói nacional, uma vez que lutara contra a consolidação do Rio Grande do Sul, “opondo-se quanto pôde ao destino histórico de sua inclusão na civilização lusitana e no Brasil”. Se Sepé tivesse vencido, acrescentava o parecer, as terras por que lutou “não tocariam” a nós.

Essa concepção de que Sepé e os indígenas podiam ser excluídos da História do Brasil incendiou a intelectualidade gaúcha, dando origem a uma profusão de artigos em jornais e revistas. Um dos primeiros a defender o parecer do IHGRS foi o jornalista Carlos Reverbel, mas muitos se insurgiram, o que culminou na publicação de um manifesto endereçado ao governador e assinado por 22 membros do instituto, entre eles nomes de peso como Manoelito de Ornellas, Mansueto Bernardi, Dante de Laytano, Borges de Medeiros e Balduíno Rambo: “Sepé é, cronologicamente, o primeiro herói dessa gloriosa galeria de heróis de que tanto se orgulha o Rio Grande do Sul (...), é muito mais gaúcho e, por conseguinte, muito mais brasileiro (...) do que os mais velhos rio-grandenses, pois estes descendem de lusitanos aqui aportados, no máximo, há 230 anos”.

Quando esse documento foi publicado, em setembro de 1956, o bicentenário de morte já havia transcorrido, sem celebrações oficiais. São Gabriel ainda esperaria cinco anos para ver uma homenagem às vítimas da Guerra Guaranítica, particularmente Sepé e seus 1,5 mil seguidores mortos três dias depois, nos campos de Caiboaté, também São Gabriel, e por iniciativa particular: o proprietário rural Rolino Leonardo Vieira fez erigir um monumento de granito em Caiboaté, em 1961, no local onde antes fora instalada a cruz de Miguel Mayrá. Passados mais seis anos, outra cruz, de concreto, foi levantada nas imediações. Em 2001, foi a vez da Sanga da Bica receber uma placa assinalando que ali morrera Sepé.

No dia 1º de janeiro de 2013, o frei Antonio Cechin (1927-2016), um dos idealizadores da proposta de canonizar Sepé, apanhou um ônibus em Porto Alegre com destino a São Gabriel. Carregava nos braços uma estátua de Tiaraju. Naquele dia, tomava posse um novo prefeito, Roque Montagner (PT), em substituição a Rossano Dotto Gonçalves (PDT). A viagem do religioso era reveladora da divisão ideológica que a figura de Tiaraju ainda despertava, passados mais de 250 anos. Para ele, a eleição afastara do poder os sucessores das sesmarias distribuídas por Gomes Freire depois do massacre dos índios em Caiboaté. “Sai defenestrado pelo voto popular o último dos prefeitos de estirpe latifundiária, totalmente identificado com a dinastia dos donos de sesmarias locais de antanho, e entra um novo prefeito”, escreveu Cechin em um artigo da época. “Entregamos, em pleno comício de posse, ao novo prefeito Roque Montagner, a estátua de São Sepé Tiaraju como sinal do grande triunfo obtido para toda a população da cidade, de modo todo particular para os excluídos: índios, negros, sem terra dos assentamentos do MST, pequenos agricultores, mulheres, catadores etc. etc.”. Foi assim que a estátua do Sepé nanico, em meio a um conflito político, acabou na Sanga da Bica.

Gonçalves, que voltou ao comando do município e hoje está no quarto mandato como prefeito (desta vez pelo PL), critica o uso político da figura de Sepé e afirma não defender latifundiários, mas sim sua comunidade.

– Defendo o direito à propriedade, de quem quer que seja e de qualquer tamanho. O Sepé dizia: “Esta terra tem dono”. Quem é proprietário de terra é dono da terra, se tem a terra escriturada. Então cada um pode dizer: “Esta terra tem dono”. Com o tempo, passaram a distorcer e ficou valendo a distorção. Ninguém pode se apropriar, nem um lado, nem o outro, da figura de Sepé Tiaraju.

Sobre a conservação dos espaços ligados à memória do herói (a Sanga da Bica, o local de sepultamento e Caiboaté), o prefeito diz que é responsabilidade da prefeitura e que providências serão tomadas quando houver qualquer problema. Ele afirma que há um projeto de pavimentação de passeio no local da morte e um plano, que depende de verbas federais, para iluminar e melhorar a visitação em Caiboaté.

O índio santificado

Desde que Tiaraju morreu, pipocaram lendas associadas a ele. Uma das mais difundidas afirma que o cacique tinha um sinal esbranquiçado na testa, em forma de cruz – o chamado Lunar de Sepé. Esse sinal teria subido aos céus e formado a constelação do Cruzeiro do Sul. Em torno dessas histórias começou a se desenvolver a devoção popular e surgiu a figura do São Sepé (que é até nome de município). Na Sanga da Bica, por exemplo, é possível encontrar uma placa em agradecimento por uma graça alcançada.

No final de 2015, um grupo de que fazia parte Antonio Cechin buscou reconhecimento oficial para a crença do povo. Entregou ao bispo de Santo Ângelo, Liro Vendelino Meurer, o pedido para dar andamento ao processo de canonização. A diocese missioneira foi a escolhida por abranger o território das antigas reduções jesuíticas e o provável local de nascimento de Sepé. O bispo, no entanto, não acolheu o pedido e devolveu a documentação aos proponentes.

– Nós achávamos que deveria assumir quem tivesse mais entusiasmo por essa causa. Eles entregaram isso, nós analisamos e, resumindo tudo, achamos por bem passar o pedido para essa equipe que tinha entregue para nós o material, para eles encaminharem onde quisessem, como quisessem – afirma Meurer.

De acordo com o bispo, a devoção existente na região não é voltada a Sepé, mas aos chamados Santos Mártires das Missões, três padres jesuítas canonizados em 1988.

– Sepé usa-se mais para nome de rua, de imobiliária, de empresa de ônibus, mas para canonização é um pouco mais difícil de perceber. Ele não faz parte do que acontece em termos de Igreja durante o ano – avalia.

O grupo teve mais sorte com Gílio Felício, que até 2018 era bispo de Bagé, diocese responsável por São Gabriel, e que foi pessoalmente ao Vaticano apresentar a causa. O papa Francisco, um jesuíta familiarizado com a história das Missões, deu o sinal verde. Com isso, a abertura do processo foi aceita e Sepé Tiaraju ascendeu ao status de Servo de Deus, primeiro passo para a santidade. O candidato a santo já ganhou até uma oração oficial, impressa em santinhos.

O padre Alex Kloppenburg, da comissão de canonização, entende que o atual Papa é um aliado e, por isso, gostaria de agilizar o processo para concluí-lo no atual pontificado. Segundo ele, a estratégia é apresentar o cacique guarani como um mártir da fé, o que permitiria que fosse beatificado sem haver reconhecimento de um milagre. Nesta sexta-feira, estavam previstos eventos religiosos na Sanga da Bica e em Caiboaté para divulgar a causa entre os grabrielenses.

– Faz tempo que Sepé vem sendo cultuado e venerado, não só internamente, na Igreja, mas muito mais na sociedade. Para o povo, ele já é santo. Mas o culto é individual, até porque nunca se falou sobre isso no passado na Igreja. Era proibido. Onde é que se viu um índio ser santo? Tem todo esse preconceito, que ainda não mudou totalmente. Ainda temos certas dificuldades internamente na Igreja e externamente também. Agora estamos nos mobilizando, também como reconhecimento de toda a causa indígena, celebrando a memória de quase 50 milhões de índios que foram mortos na América Latina. Queremos trazer no bojo o martírio e o genocídio de tantos índios, que infelizmente continua acontecendo – disse Kloppenburg.

Nesse esforço, os locais associados a Sepé em São Gabriel são considerados de grande importância, e os postuladores da causa têm planos para eles, como a criação de um santuário. No entanto, a iniciativa católica pode encontrar barreiras entre os próprios indígenas. Principal liderança na região de São Gabriel, o cacique Natalino se opõe à canonização:

– Os guaranis não são bem com isso. Eu também não... Porque certamente Sepé tombou e o espírito dele ficou vagando. A pessoa, depois que morre, o espírito não tem poder nenhum. Eles querem considerar Sepé como um santo e isso aí não existe. A gente é um espírito que tem poder enquanto é vivo. Se ele está bem com Tupã, ele morreu e vai viver eternamente por Tupã. Agora, no dia 7/2 (sexta-feira, data de aniversário da morte de Sepé), a diocese vem aí. O padre Alex me ligou, é para eu participar, mas eu não... Eu não tenho respeito dessas situações de canonizações. Eles certamente vão me pegar no dia 7, mas eu estou constrangido. Hoje em dia, não há uma comunidade indígena expressiva em São Gabriel, mas grupos de outras regiões costumam passar temporadas na cidade. Das atribuições do cacique Natalino consta auxiliar esses visitantes.

No final de janeiro, ele recebeu um grupo de 23 caingangues. Eles vieram, explicou o cacique, para vender artesanato. Naqueles dias, era possível encontrá-los na zona central da cidade, espalhados em pequenos grupos. Ofereciam enfeites coloridos e exibiam cartazes com os dizeres: “Me ajude com agasalho ou moeda para comprar alimento. Deus lhe dê em dobro”.

Desse grupo faziam parte alguns indiozinhos, meninos e meninas de pouca idade. Postados à porta de supermercados ou de outros estabelecimentos comerciais, com o mesmo cartaz em mãos, as crianças pediam esmola.

Quase três séculos depois, continua o massacre.

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2020/02/as-contradicoes-e-as-lendas-em-torno-de-sepe-tiaraju-o-indio-gaucho-em-processo-de-canonizacao-na-igreja-ck6chj8230h9i01qd00bxqajy.html


Torre de pedra em homenagem aos 1,5 mil mortos de Caiboaté
Jefferson Botega / Agencia RBS



Cacique Natalício em frente à estátua de Sepé Tiaraju, em São Gabriel
Jefferson Botega / Agencia RBS

Conheça a história de Sepé Tiaraju, o índio que pode virar santo

Nos locais em que ele e seus seguidores foram assassinados, no que foi considerado o maior massacre do RS, na região de São Gabriel, as homenagens ao herói indígena são discretas.

O cavalo rodopiou em um buraco de tatu e arremessou Sepé ao solo. Com a lança, um soldado português trespassou-lhe o corpo. Veio o governador de Montevidéu, o espanhol José Joaquim Viana, e deu início à tortura, queimando com pólvora a carne do líder indígena. Depois disparou um balaço de pistola e mandou que decepassem a cabeça.

O martírio de Sepé Tiaraju aconteceu em uma noite enluarada, à beira de um córrego, tímido afluente do Vacacaí. Nesta sexta-feira (7), completou 264 anos.

Foi uma espécie de prólogo. Três dias depois, em 10 de fevereiro de 1756, a 30 quilômetros de distância, os exércitos coligados de Portugal e Espanha fizeram o enfrentamento decisivo com as forças indígenas. Chacinaram 1,5 mil guaranis em menos de duas horas, empapando o pampa de sangue.

A Sanga da Bica, onde Sepé morreu, e os campos de Caiboaté, local do maior massacre que o Rio Grande do Sul já viu, são assinalados hoje por marcos e monumentos. Já Sepé Tiaraju teve seu nome inscrito em aço no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, uma lista seleta em que aparece ao lado de Tiradentes, Zumbi dos Palmares e Duque de Caxias. No imaginário popular, ele granjeou fama de santo, reputação chancelada agora pelo Vaticano, que autorizou a Diocese de Bagé a iniciar um processo de canonização. Na sexta-feira, integrantes da comissão responsável promoveriam uma série de celebrações nos locais associados ao perecimento dele e de seus 1,5 mil companheiros.

Ainda assim, o status do cacique guarani, da Sanga da Bica e de Caiboaté no panteão gaúcho nunca foi pacífico. A proposta de canonização, por exemplo, foi feita primeiro ao bispo de Santo Ângelo, que declinou de levá-la ao Papa. O palco do grande massacre é uma propriedade privada, onde uma torre de pedra foi erigida por iniciativa particular. Quando a porteira está fechada, os visitantes precisam passar por entre os fios de arame da cerca para contemplar de perto o monumento e a cruz próxima.

Quanto ao lugar da morte de Tiaraju, está situado na zona urbana de São Gabriel, a poucos quarteirões do Centro. Em 1955, quando se propôs ao governo do Estado a instalação no local de uma estátua do herói, para marcar os 200 anos de seu tombo, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS) emitiu parecer contrário, alegando ser inadmissível encarar Sepé “como uma expressão do sentimento, das tendências, dos interesses, da alma coletiva, enfim, do povo gaúcho”.

Só nesta década uma estátua foi colocada, mas trata-se de um Sepé nanico, com um metro de altura.

– Enchem muito meu saco, me chamam até de anão por causa dessa estatuazinha – reclama o cacique Natalino Marcos dos Santos, de São Gabriel, que está à frente do Movimento Sepé Tiaraju.

Localizada em um espaço acanhado entre residências e um matagal, a imagem encontra-se deteriorada e foi alvo de vândalos. Ao lado, erguida por toras, há uma cruz missioneira de pau e uma espécie de coreto em homenagem aos Sete Povos das Missões, com telhas quebradas e repleto de pichações. Um pouco adiante, no fim de uma rua sem saída, uma outra cruz de madeira assinala o ponto onde se acredita ter ocorrido o sepultamento de Sepé. No fim de janeiro, ela estava encoberta pelo mato. 

Para diferentes pesquisadores e religiosos ouvidos por GaúchaZH, ainda persiste em relação a Tiaraju, em determinados setores, a mesma má-vontade explicitada seis décadas atrás no parecer do IHGRS. Em parte, o motivo seria tratar-se de um indígena, e ainda por cima de um indígena que luta por seus direitos, em um país onde os povos nativos foram e são alvo de rapinas, extermínio e preconceito. Outra possível razão seria de caráter ideológico: o cacique guarani foi abraçado como símbolo por movimentos sociais (o MST entre eles), o que motivaria uma certa rejeição a aceitá-lo como herói ou santo.

Responsável pela paróquia de São Gabriel, o padre Emílio Groemendal Barúa afirma que a célebre frase “Esta terra tem dono”, atribuída a Tiaraju, tem sido evitada, inclusive durante a Romaria da Terra realizada em São Gabriel, em 2016, para marcar os 260 anos do massacre de Caiboaté.

– Isso puxa para a divisão política, ideológica. Por isso, como Igreja, a gente está dispensando essa frase. Estamos buscando uma vida de santidade a partir de Sepé, então não vamos dividir as pessoas.

Alessandro Carvalho Bica, professor de História da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e integrante da comissão de canonização, acredita que atacar a figura de Tiaraju possa ser uma forma de desautorizar os movimentos sociais, que abraçaram o cacique como símbolo:

– Sepé se voltou contra o Estado, contra Portugal e Espanha, na luta pela posse da terra que era dele. É muito emblemático. E o momento que a gente vive hoje é delicado, com uma polarização ideológica muito grande, até mesmo dentro da Igreja, que tem uma ala conservadora que não aceita o Sepé. Isso não é nenhuma inverdade. Então, há um processo lento, delicado, de recolha de documentos, de recolha de informações, com a ideia de tornar Sepé um mártir da Igreja e romper com esse estigma de que ele é somente um santo das causas dos movimentos sociais.

Sapé, Zapé. Thearaju?

Não há certezas sobra a data ou o local de nascimento de Sepé Tiaraju. Até mesmo seu nome gera dúvidas, aparecendo grafado de diferentes maneiras em documentos da época: Joze Thearaju, Sapé, Josepho, Tiararu, Zapé. O que se sabe é que ele era um cacique guarani com posições de comando na estrutura das Missões, as 30 povoações estabelecidas por padres jesuítas 150 anos antes, por ordem do rei da Espanha, com a finalidade de catequizar os indígenas.

Na época de Sepé, esses povos eram verdadeiras cidades, com atividades comerciais, artísticas, educacionais e de manufatura. Apenas nas sete missões a oriente do Rio Uruguai, no atual território gaúcho, viviam 30 mil pessoas. Como a zona não era propícia para o gado, as reduções tinham suas estâncias mais ao sul, no pampa, incluindo a área onde hoje estão os municípios de Bagé e São Gabriel. Sepé estava vinculado ao povo de São Miguel. Era alferes-mor (uma patente militar), corregedor (espécie de governante municipal) e comandante da milícia da região.

O mundo missioneiro de que ele fazia parte começou a ruir em 1750, quando Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri, que redesenhava a divisão do território sul-americano entre as duas coroas ibéricas. Pelo acordo, os castelhanos deveriam entregar a área dos sete povos aos lusitanos, removendo dali os indígenas, sem qualquer tipo de indenização.

Os nativos sentiram-se traídos. Recusaram-se a abandonar seu território e sublevaram-se, o que deu origem à Guerra Guaranítica (1753-1756). De um lado estavam os indígenas, principalmente guaranis. Do outro, as poderosas forças coligadas de Portugal e Espanha.

Sepé foi um dos principais líderes das tropas missioneiras. Em 1754, comandou a artilharia de São Miguel, composta de dois canhões de ferro e dois de taquaruçu, em ataque a posições portuguesas em Rio Pardo. Foi uma iniciativa malsucedida, em que ele acabou capturado. Mas conseguiu fugir de forma espetacular: enquanto era escoltado por soldados lusos, saiu em disparada com o cavalo, atravessou o rio a nado e se embrenhou no matagal, debaixo de tiros disparados pelo inimigo.

No começo de 1756, quando 4 mil soldados se aproximavam pelo sul, liderados pelos governadores de Buenos Aires (José de Andonaegui) e do Rio de Janeiro (Gomes Freire), duas das maiores autoridades coloniais na América, Sepé estava na região de São Gabriel para comandar a resistência. Experimentado, ele sabia não ser possível combater frontalmente o inimigo, muito mais poderoso. Preferia utilizar táticas de emboscada. Uma dessas escaramuças foi-lhe fatal. Depois de provocar as forças ibéricas, os indígenas saíram em disparada, para se esconder no mato. Sepé estava quase lá quando ocorreu o famoso e trágico tropeço de seu cavalo. Três dias depois, em Caiboaté, o cacique Nicolau Neenguiru cometeria o erro de enfrentar os inimigos em campo aberto, em formação de meia-lua. Portugueses e espanhóis cercaram-nos e promoveram uma carnificina. Mataram 1,5 mil e perderam só 10 homens.

– A Guerra Guaranítica, na verdade, foi um genocídio – diz o professor de História José Fernando dos Santos, chefe de serviços do Museu Nossa Senhora do Rosário do Bom Fim.

Segundo relatos da época, o corpo de Sepé foi sepultado a algumas centenas de metros da Sanga da Bica. Em Caiboaté, menos de um mês depois do massacre, um cacique fez erguer uma cruz de madeira no alto da coxilha, com inscrições em guarani: “A 7 de fevereiro morreu o corregedor Sepé Tiaraju, num combate que houve num sábado. A 10 de fevereiro, numa terça-feira, feriu-se uma grande batalha em que pereceram, neste lugar, 1.500 soldados e seus oficiais, pertencentes aos Sete Povos do Uruguai. A 4 de março mandou D. Miguel Mayrá fazer esta cruz pelos soldados”.

Todos esses lugares – a Sanga da Bica, o ponto de sepultamento de Sepé e os campos de Caiboaté – são espaços marcantes da sangrenta conquista da América do Sul pelos europeus. Para os povos indígenas, têm ainda mais significado e estão impregnados de uma memória dolorosa. No fim de janeiro, ZH acompanhou o cacique Natalino, que é caingangue mas foi criado por um casal de guaranis, em uma incursão que começou no Museu Nossa Senhora do Rosário do Bom Fim, no centro de São Gabriel. Instalado na antiga matriz da cidade, o museu praticamente não tem peças dos índios que viveram na região, mas conserva como maior tesouro um conjunto de imagens missioneiras, algumas trazidas na época da construção do templo, concluído em 1817. Esculpidos em madeira por índios das reduções jesuíticas, estão lá um São José de pau oco, uma Nossa Senhora da Saúde, um São Nicolau e um Menino Jesus de fisionomia guarani, com um cocar em mãos. A peça mais impressionante é um São Miguel Arcanjo confeccionado entre os séculos 17 e 18. Trata-se de um indígena com cocar, que pisoteia um demônio. O demônio tem a fisionomia de um bigodudo bandeirante paulista.

A parada seguinte foi a Sanga da Bica. Natalino lamentou a conservação do espaço e falou dos planos de encaminhar a demarcação como área indígena, para erigir ali um grande monumento. Um projeto para a área está sendo elaborado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) da Unipampa de São Gabriel. A proposta é revitalizar o local, convertendo-o em um espaço de memória indígena. Uma das iniciativas do núcleo foi solicitar à prefeitura a restauração da maltratada imagem de Sepé e transferi-la para o museu – o entendimento é de que a estátua não foi feita para permanecer ao relento. Integrante do Neabi, o professor de História Carlos Alberto Xavier Garcia diz que o projeto abrange a questão ambiental.

– Atualmente, a sanga recebe águas da chuva e esgoto da cidade. Está sofrendo depredação humana. É um lugar sem iluminação, sem segurança, sem espaço para visitação. Vamos tentar viabilizar isso – disse.

Depois da Sanga da Bica, Natalino seguiu até o fundo de uma rua sem saída, local onde se crê que Tiaraju tenha sido sepultado. Ali, o cacique reclamou do mato crescido sobre a cruz que serve de marco. Bem em frente, um casal observava a cena. Fabiano Ferreira Marques, 34 anos, e Anelise Supriano de Oliveira, 35 anos, moram a poucos passos do singelo monumento, mas não sabiam que se tratava de uma homenagem a um herói da pátria.

– Dizem que aí era o cemitério. É antigo. Desde que me conheço por gente já tinha cruz aí – afirmou Anelise.

Informada de que era o possível local de sepultamento de Sepé, a moradora revelou não ter lembrança da história do personagem. Anelise tem feições tipicamente indígenas. Ao mencionar que seu sobrenome é “Supriano”, Natalino sobressaltou-se:

– É parente! É indígena! “Supriano” é lá da Reserva da Guarita. Grande parte dos indígenas é Supriano lá.

Impassível, a jovem disse não ter qualquer conhecimento sobre eventuais antepassados ameríndios.

Por fim, o cacique visitou Caiboaté. Caminhou vagarosamente e em silêncio até a cruz no topo da coxilha. Os únicos seres visíveis em todo o pampa eram dois cavalos. Ao redor da cruz, espalhava-se em círculo a ossada de um boi, alvacenta e nua. No solo sob o qual jaziam os restos de centenas de índios, havia os ossos, bosta e pequenas flores amarelas. Diante da cruz, cocar na cabeça e uma lança pataxó em mãos, Natalino começou a dançar e cantar em guarani. Ele explicou que se tratava de um ritual de louvação aos espíritos e que o cântico, traduzido ao português, significava “Guarani morreu na luta, derramou o sangue selvático”.

– Esses lugares são importantes para os índios, porque neles a gente sente a vida dos guaranis que foram massacrados. Eu mesmo tenho visões de 1756, de uns que chegam a cavalo e palmilham a trilha. É muito forte. Em Caiboaté, quando chego perto da cruz, sinto o humor de algum espírito ali, ficaram os espíritos mundanos. O coração aguentar, ah, é um esforço. Mas os lugares não estão bem cuidados – disse Natalino.

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2020/02/conheca-a-historia-de-sepe-tiaraju-o-indio-que-pode-virar-santo-ck6chg9js0f6a01mv4rrqmvln.html

















Uma cruz lembra o massacre de 1,5 mil índios nos campos de Caiboaté, há 264 anos
Jefferson Botega / Agencia RBS



Santuário improvisado: a estátua vandalizada de Sepé e a cruz missioneira de pau erigida por toras - Jefferson Botega / Agencia RBS


Conjunto de imagens missioneiras do museu gabrielenseJefferson Botega / Agencia RBS





São Miguel indígena pisoteando um demônio com a fisionomia de um bandeirante: destaque do museu - Jefferson Botega / Agencia RBS



Cacique Natalício em CaiboatéJefferson Botega / Agencia RBS