domingo, 5 de abril de 2020

Professor da UFRGS detalha como "solucionou o mistério da construção de Machu Picchu"

Responsável pelo referencial "Atlas Ambiental de Porto Alegre", o geólogo Rualdo Menegat tem sido aclamado internacionalmente por sua original pesquisa sobre a civilização inca

Em 1913, a revista da National Geographic Society revelou ao mundo as imagens impactantes de Machu Picchu, a cidade inca encontrada dois anos antes, no meio dos Andes, no Peru, pelo explorador norte-americano Hiran Bingham. Era um momento de orgulho para a organização, que financiou três expedições de Bingham ao local. Em dezembro de 2019, passados mais de cem anos, a National Geographic, em sua versão espanhola, voltou ao tema, em uma reportagem que anunciava: “Solucionado o mistério da construção de Machu Picchu em local tão inacessível”. Ao mesmo tempo, um número incalculável de publicações do mundo todo publicavam a mesma notícia: o geólogo Rualdo Menegat, professor da UFRGS, havia conseguido explicar o motivo de os incas terem erigido sua civilização nas encostas dos Andes. 

Com quase três décadas como docente da universidade, Menegat era, até então, reconhecido principalmente como o coordenador do impressionante Atlas Ambiental de Porto Alegre, inspirador de publicações similares mundo afora. Desde novembro, quando apresentou nos EUA seu trabalho sobre os incas, ele se tornou célebre pela tese de que a civilização inca viabilizou-se pela domesticação de falhas geológicas nas montanhas. Ele fala mais sobre essa pesquisa a seguir.

Não é comum um pesquisador brasileiro estudar um assunto relacionado a outro país. O que levou o senhor a Machu Picchu?
É uma trajetória incomum, um cientista fazer uma grande descoberta em um país vizinho. Sempre tive interesse pela questão do tempo profundo. O presente é só a pontinha do iceberg de um longo desenvolvimento histórico humano, e também da Terra. Desvendar esse mistério me atraiu desde os oito anos de idade, quando decidi estudar geologia. Tinha interesse pelas civilizações antigas, por causa das rochas. Queria saber como elas faziam obras tão grandes como pirâmides ou cidades de pedra em cima de montanhas. Então cursei Geologia, fiz o Atlas Ambiental de Porto Alegre e, por conta desse atlas, ocorreu na capital gaúcha um simpósio promovido pela ONU, em 1999. Uma delegação que se interessou foi a peruana. Eles me convidaram a ir ao Peru para dar conferências e ajudá-los a fazer um atlas. Respondi: tudo bem, mas incluam Machu Picchu no roteiro.

Então o senhor esteve lá para dar uma formação?
E conhecer Machu Picchu, que sempre esteve na minha pauta de interesses, até como latino-americano, por ser um ponto de identidade de toda a América Latina. E fui a Machu Picchu como geólogo. O geólogo tem de caminhar, andar entre as montanhas, entrar em desfiladeiros, se embrenhar em sendas inexploradas. Comecei pelas montanhas mais altas, de 7 mil metros de altitude, e fui descendo até Machu Picchu, a 2,3 mil metros, cercada por grandes montanhas.

Foram vários dias percorrendo o local?
Sim, até que por fim enxergo Machu Picchu do alto. Nesse momento, concluo que a única possibilidade daquele contexto eram as falhas geológicas. Pensei: nossa, Machu Picchu está em lugar muito desgastado pela erosão, um cruzamento de falhas geológicas. Mas a literatura não falava sobre isso.

O que é uma falha geológica?
Vem a ser uma ruptura dos maciços rochosos. É como um saco de bolacha bem empacotado. Se tu apertares, as bolachas vão quebrar, mas mantêm a forma. Os maciços rochosos foram prensados, esmagados, por forças compressivas muito fortes das placas tectônicas. Onde aconteceu a ruptura, há uma falha. A ruptura é o ponto de uma massa que, ao ser pressionada, quebra. É uma fenda.

E só de olhar o senhor percebeu que esse era o caso em Machu Picchu?
Sim. Onde há falha geológica, há dano na rocha, que fica toda fraturada na parte lateral dos dois blocos. Esse fraturamento faz com que o maciço rochoso se quebre naquela região, e essa quebradura de blocos menores facilita a erosão. Onde há falha, a erosão é maior.

Não existia literatura sobre essa característica de Machu Picchu?
Nada. E achei fantástico, porque era uma explicação geológica e geomorfológica. A questão seguinte era saber se a cidade estar ali era um acaso ou era intencional. Voltei ao Peru já no ano 2000 para investigar a escolha dos locais de assentamento incaico. Fiz expedições em 2001, 2006, 2010 e 2012. Fui aprofundando e comprovando a tese.

O senhor concluiu que a construção de Machu Picchu naquele local foi intencional. Que intencionalidade é essa? O que os incas buscavam ao escolher aquela área?
Minha tese foi que Machu Picchu não podia ser obra do acaso ou um capricho. Quem construiu a cidade o fez dentro de uma prática construtiva dos Andes. Você vê hoje o grande edifício de Abu Dhabi (Burj Khalifa) e diz: meu Deus, como é possível, construíram um edifício de 800 metros de altura. Mas, se for analisar a sociedade contemporânea, construir edifícios é uma prática. Não se construiu um edifício de 800 metros onde ninguém sabe construir edifícios, mas onde todos sabem. Machu Picchu é o mesmo. Por que construíram uma cidade tão alta, em um lugar de tão difícil acesso? Porque essa era a prática construtiva dos Andes à época. 

Como surge essa prática?
A questão é entender porque ela é necessária. Nós, brasileiros, que vivemos em clima úmido, num país tropical, florestado, não fazemos ideia do que é uma cordilheira imensa como a andina, com altitudes de 2 mil a 7 mil metros, onde há condições climáticas extremas, desde a glacial, nos cumes nevados, até a muito seca, nos desertos. A dinâmica andina é inóspita. É um lugar muito difícil de habitar. Há dinâmicas geotectônicas e geológicas severas: terremotos, vulcões, derretimento de gelo. Há momentos de muita chuva. Se tu perguntares a um geólogo onde colocar uma cidade nos Andes, ele vai dizer: evite a qualquer custo os fundos dos vales. Tu poderias retrucar: mas esses são os melhores lugares, com terrenos planos e água corrente dos rios. Para a civilização ocidental, os vales são atrativos, porque é uma civilização do domínio fluvial, como os egípcios no Nilo e os sumérios no Tigre e no Eufrates. Nos Andes, os vales são proibitivos. Em um ano, tu poderás plantar nas margens do rio e ter uma bela colheita. No ano seguinte, poderás ter uma seca terrível. No outro, uma inundação, quando o rio carrega tudo embora. Em outro momento, uma encosta inteira da montanha desaba sobre o vale e soterra tudo. No Ocidente, nossa construção civilizatória consiste em domesticar os rios. A história antiga é a história das civilizações fluviais. Nos Andes, não. Percebi que a estratégia civilizatória andina devia ser outra. 

E qual seria?
Tive de entender o que seriam as janelas de habitabilidade, onde a vida humana seria possível nos Andes. Se não é possível no fundo dos vales, então onde? Em locais elevados, mas os locais elevados são rochosos. Os Andes são o mundo das rochas. E, no mundo rochoso elevado, é possível construir onde ele está falhado, que é onde as rochas estão mais quebradas, e principalmente onde há cruzamento de falhas, porque ali os blocos ficam previamente cortados. Ali é possível assentar uma cidade, removendo bloco por bloco. O material de construção, que são os blocos rochosos, está previamente cortado, por causa da quebra e da erosão. Ao identificar um lugar com essas características, os construtores recolhem os blocos rochosos e fazem os terraços para plantio, nas encostas vertiginosas, com os próprios blocos. E podem ir removendo os blocos e encravando as edificações.

Se não houvesse a falha, não haveria onde assentar a cidade no maciço e não haveria rochas soltas para a construção?
Exatamente. E há um terceiro fator importantíssimo. No reino fraturado, que é o reino das montanhas andinas, a água corre pelas falhas. As falhas são aquíferos. A água goteja permanentemente, com volumes mais ou menos contínuos. Não é em abundância, mas nunca é escassa. Se souberes canalizá-la, tens água corrente e podes estabelecer ritmos civilizatórios. Então eles constroem andenes, que são muros, terraços, escadarias que eles assentam nessa encosta rochosa falhada. E, com isso, conseguem uma coisa prodigiosa, que é transportar as pequenas faixas de solo que estão ao lado do rio, férteis. Transportam para essa escadaria na encosta rochosa estéril, para o cultivo.

Então os incas domesticam a montanha?
Sim. Para ser mais específico, domesticam a falha geológica. Essa estratégia civilizatória garante zonas de habitabilidade nos Andes, que é onde é possível construir esses terraços e encravar esses assentamentos. Os incas vivem em locais elevados, mais ou menos numa mesma faixa de altitude.

Como o senhor fez para demonstrar sua tese?
O primeiro passo foi mostrar que, sim, há falhas. Fiz estudo por imagem de satélite, usando sete escalas de avaliação e análise. Estudei toda a região dos rios Apurimac e Urubamba-Vilcanota, que é onde estão as cidades incas mais famosas: Machu Picchu, Ollantaytambo, Pisac, Urubamba. Percebi que havia redes de falhas em toda essa região. São linhas paralelas e se cruzam também. Os rios correm paralelos, são todos encaixados nas grandes falhas. Os padrões são fractais. Tu os enxerga com a dimensão de 200 quilômetros, de 20 quilômetros, de dois quilômetros e podes ir até dois metros. As linhas que definem os setores de Machu Picchu coincidem com as direções das falhas, porque ali é onde tem facilidade de desmontar a rocha. O que tu tens no desenho de Machu Picchu é um mapa das falhas. Eles construíram procurando as falhas e removendo os blocos à medida que se deixavam desprender. Ao fazerem isso, revelaram as linhas de falha. Meus métodos foram análise de imagens de satélites em várias escalas, análise de campo e medição de fraturas. Depois, passei dias na própria cidade, medindo essas linhas de escadarias. Onde o arqueólogo via uma escadaria, eu, geólogo, via uma linha de falha.

E quanto às outras cidades incaicas?
Depois do estudo em Machu Picchu, fui ver se era uma regra geral. Estudei Ollantaytambo, cidade vizinha no Vale Sagrado, depois Pisac e inclusive Cusco, que hoje está soterrada pela colonização espanhola e pela civilização atual. Pude ver que todas seguem o padrão, ou seja, são mapas de falhas geológicas. Isso é incrível. E me mostrou que eu estava diante de uma teoria geral sobre o modo de domesticação andina.

Os incas sabiam que se tratava de falhas geológicas?
O conceito de falha geológica é da ciência geológica. Os incas não vão ter uma teoria explicativa. O que eles têm é uma análise empírica de tentativa e erro. Mas também deviam ter uma espécie de conhecimento que se equivale ao nosso conhecimento geológico. Eu diria que é impossível estabelecer uma civilização das dimensões da civilização inca sem que eles conhecessem o mundo andino, e o mundo andino é o mundos das rochas. Eles deviam ter um conhecimento profundo das pedras, assim como nossos indígenas têm um conhecimento espetacular das florestas. Eles conheciam esse mundo das fraturas porque é o mundo deles. A identificação de falhas era uma questão fundamental. O pensamento deles não é científico. Mas é lógico. Pude mostrar, com meu estudo, que há um pensamento ali.

Eles enxergam na geografia da montanha algo que um ocidental não enxergaria?
Não enxergaria e não enxergou. Por isso levou tanto tempo até alguém identificar isso. Por isso que meu estudo teve impacto.

O senhor defendeu seu doutorado, com essas conclusões, em 2006. recebeu várias distinções, como um título de doutor honoris causa, no Peru, em 2014. Na ocasião, Zero Hora publicou reportagem sobre o assunto. Mas só agora veio a repercussão internacional. Por quê?
Depois dessa descoberta, que é minha tese de doutorado, fiz um conjunto de conferências para eles, para a comunidade andina, para os brasileiros, porque era uma revelação importante, que retirava a ideia de que os incas são só o mundo da magia e do místico. Eu queria mostrar que, para além do mistério inca, da magia, há uma questão importante que é o pensamento. Ninguém vive nos Andes só com magia. É preciso ter um conhecimento profundo daquele mundo. Fui ver o quanto essa minha descoberta tinha significado para os peruanos, para que eles não vissem isso como uma descoberta de um estrangeiro. Estamos falando da imagem que os peruanos têm de si e da pepita de ouro que é Machu Picchu. É algo muito delicado para eles. Só em 2019 concluí que esse processo já estava maduro.

E o que o senhor fez?
Resolvi participar do congresso da Geological Society of America, nos EUA, e submeter meu trabalho a provas maiores, aos geólogos norte-americanos. Para minha surpresa, isso causou um enorme impacto na comunidade geológica norte-americana. Eu sabia que tinha em mãos um tema relevante, uma descoberta nteressante. Mas que podia ser rejeitada. Sou brasileiro, sul-americano, a UFRGS é uma universidade maravilhosa, mas se uma pesquisa é revelada por Cambridge, o impacto é diferente. 

Uma prova é que, embora publicado em 2006, seu trabalhou permaneceu pouco conhecido até essa apresentação no ano passado?
Sim. Porque não é fácil. Acho que nós, brasileiros, devemos ter muito mais confiança na nossa capacidade tecnológica e científica. Não precisamos dos anais internacionais para saber que somos prodigiosos, criativos, inteligentes. Sempre que apresentei esse tema no Peru, as plateias ficavam boquiabertas.

Como foi a repercussão internacional, a partir dessa apresentação do ano passado?
Foi o coroamento de um longo trabalho. O nome da UFRGS saiu grafado em mais de 30 países, em mais de 15 línguas, em canais científicos e também em veículos muito populares, como a mídia de massa, Le Monde, Times, BBC, Daily Mail... Na imprensa especializada também, como as revistas Archeology e Science... A National Geographic anunciou: “Está resolvido o mistério de Machu Picchu”. 

O senhor ainda continua envolvido com o tema?
Sim, porque o estudo permite desenvolver questões importantes. Uma delas é como resolver os problemas urbanos atuais em zonas montanhosas ou zonas declivosas. Se os incas desenvolveram uma civilização prodigiosa com 10 milhões de pessoas em encostas muito mais íngremes e perigosas do que as nossas, por que nós não poderemos conseguir? Temos coisas a aprender do ponto de vista técnico, dos processos de construção e da habitabilidade das encostas brasileiras, evitando tragédias. Estou tentando aplicar isso na nossa realidade. Em geral, a solução mais imediata que temos é remover as pessoas, mas isso é impraticável diante do problema social que é remover e diante dos custos econômicos, sociais e culturais. Precisamos ter outras abordagens técnicas, customizáveis, possíveis de serem implantadas pelos próprios moradores, mais resilientes e mais adaptadas às situações em que eles se encontram. E foi isso que vi nos incas. Eles respeitam o lugar onde vão construir. Temos muito a aprender com eles.

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2020/04/professor-da-ufrgs-detalha-como-solucionou-o-misterio-da-construcao-de-machu-picchu-ck8j36lwx00y701o5n94lsln6.html

























Incas aproveitaram falhas geológicas para erguer sua impressionante cidade, concluiu pesquisador gaúcho
Adriana Franciosi / Arquivo Pessoal




















Rualdo Menegat: temos muito a aprender com os incas
Fernando Gomes / Agencia RBS

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Novos sítios arqueológicos são descobertos em Serranópolis (GO) com ação do Iphan

Trinta novos sítios de pinturas e gravuras rupestres foram descobertos no município de Serranópolis (GO), localizado na região Sudoeste do Estado de Goiás. A descoberta é resultado de ações de conservação realizadas em dez sítios de abrigo do complexo arqueológico do local, contratadas pela Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Estado de Goiás (Iphan-GO). No total, foram investidos pelo Iphan quase R$ 193 mil.
As atividades foram voltadas a preservação dos sítios com pinturas e gravuras rupestres que, a partir de agora, também passam a oferecer mais segurança às atividades turísticas, educacionais e de pesquisa.
Os trabalhos consistiram na retirada da vegetação, de pisos e paredes dos abrigos, limpeza do acúmulo de massa vegetal e remoção de microfaunas, como cupins, ninhos de formigas, caixas de marimbondos e colmeias de abelhas, que foram transportadas para uma área de preservação.  Além disso, foram feitos testes químicos em pequenos espaços sem pinturas para limpeza de pichações, fuligem e trilhas de cupins.  
Os serviços foram realizados no segundo semestre de 2019 e tiveram como objetivo frear o processo de degradação e minimizar os impactos sobre o conjunto de arte rupestre.
Trabalharam na ação um grupo formado por quatro arqueólogos, um geoarqueólogo, três biólogos, um engenheiro ambiental, um apicultor e três guias turísticos da região, que também tiveram o acompanhamento da equipe de arqueologia do Iphan-GO.
O Complexo Arqueológico de Serranópolis, mais especificamente os conjuntos de abrigos sob rocha, compõe um significativo patrimônio arqueológico e ambiental do Estado de Goiás, tanto por sua importância científica relacionada à ocupação do território goiano quanto por sua beleza cênica. Desde 1970, é referência na história do povoamento do cerrado brasileiro, com datações de 11 mil anos.
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Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
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Clélia Lima -  clelia.lima@iphan.gov.br
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Fonte das imagens: do site Iphan