domingo, 24 de junho de 2018

Como o Theatro São Pedro sobreviveu a 160 anos de história no Rio Grande do Sul

Reportagem retorna à Porto Alegre do século 19 para mostrar como a tradicional casa de espetáculos de Porto Alegre se tornou uma das principais do Brasil


















O Theatro São Pedro, em Porto Alegre, hoje
Omar Freitas / Agencia RBS

Na contramão do provincianismo atribuído historicamente ao Rio Grande do Sul, o Theatro São Pedro chega aos 160 anos como símbolo ainda vibrante de uma sociedade que aspira ao cosmopolitismo. Pelo palco hoje sagrado, que rivaliza em importância e charme com as mais antigas casas de espetáculo do país, passaram alguns dos maiores gênios da criação artística do Brasil e do mundo, como o pianista Arthur Rubinstein (duas vezes), o violonista Andrés Segovia, o compositor Heitor-Villa-Lobos, o dramaturgo Eugène Ionesco, o diretor Bob Wilson e o compositor e pianista Philip Glass.

A lista é longa. Pode-se dizer que a história das artes performáticas tem sido descortinada ao público do São Pedro por diversas gerações como um museu vivo: estiveram por lá as sociedades dramáticas e as companhias líricas do século 19, as grandes companhias de teatro brasileiras do século 20 e as estrelas do presente, assim como os coletivos e artistas que constituem a pujante produção local. Mas nem tudo foi glamour. Um mergulho nos alfarrábios do passado revela uma jornada de glória e decadência, pincelada por episódios insuspeitados pelos espectadores de hoje.

Se o teatro se tornou uma janela para o mundo, nem sempre foi assim. Na ocasião da inauguração do teatro, em 1858, o Rio Grande do Sul era, de fato, uma província. Porto Alegre contava com cerca de 20 mil habitantes. No início dos anos 1860, a cidade tinha apenas 24 padarias, 19 bodegas, 10 cafés, 10 hospedarias e uma confeitaria, na contabilidade de um geógrafo. O primeiro mercado público é de 1844. Foi demolido em 1870 para dar lugar ao novo, que havia sido inaugurado em 1869. A cidade, que já tinha vias centrais calçadas, era iluminada por lampiões a óleo de baleia e, depois, óleo de peixe, conforme informações compiladas pelo historiador Gunter Axt. Em 1864, chegaram os combustores a querosene e, a partir de 1887, alguns comércios e residências passaram a contar com iluminação elétrica. No século 19, muitos habitantes andavam a cavalo. O primeiro automóvel apareceu na cidade em 1906 e, dois anos depois, vieram os bondes elétricos.

Era uma época de transformações. Entre 1892 e 1916, o número de habitantes em Porto Alegre duplicou. Em 1858, ano de inauguração do São Pedro, a província tinha mais de 70 mil cativos, o que correspondia a um quarto da população, segundo dados do historiador Fábio Kühn. O Centro Abolicionista foi criado em 1883. Quatro anos depois, menos de 1% da população sul-rio-grandense era formada por escravos. Em 1906, ocorreu a primeira greve geral de trabalhadores de Porto Alegre, reivindicando jornada diária de oito horas. Em 1918, a cidade já tinha quase 180 mil habitantes.

O São Pedro não foi o primeiro teatro de Porto Alegre de que se sabe. Esse título pertence à Casa da Comédia, um barracão precário inaugurado em 1790 na atual Rua Uruguai, voltado a um público majoritariamente popular e masculino, que assistia às apresentações em pé, interagindo com os artistas. Quatro anos depois, o espaço ganhou ares um pouco mais burgueses, passando a se chamar Casa da Ópera – por isso, a Rua Uruguai era conhecida como Beco da Casa da Ópera. Em 1838, quando o espaço não operava mais, uma sociedade dramática alugou um prédio na atual Rua Marechal Floriano para abrir o Teatro Dom Pedro II. O Teatrinho, como era chamado, funcionou durante 20 anos. Modesto, ainda não era o que Porto Alegre precisava.

Data de 1833 a primeira notícia sobre o que veio a ser o Theatro São Pedro. Foi quando 12 cidadãos de posses se uniram em uma sociedade particular para pleitear ao presidente da Província, Manuel Antôno Galvão, a doação de um terreno para construir uma casa de espetáculos sem precedentes em Porto Alegre.

– Naquela época, uma cidade só podia se considerar cidade se tivesse um bom quartel, uma igreja bacana e um teatro. A existência de um teatro naquele momento era o que dava foros de civilidade para uma determinada comunidade – afirma o historiador Gunter Axt. – Além disso, os espetáculos teatrais tinham um componente didático naquele momento, de formação da moral. Era uma sociedade burguesa querendo se afirmar, e o teatro era o meio para isso.

De passagem por Porto Alegre durante a construção do São Pedro, o viajante francês Arsène Isabelle lamentou a localização do futuro teatro, no alto de uma rua "que se transforma em uma catarata nos dias de chuva", mas o terreno de 968 metros quadrados doado pelo presidente da Província, na atual Praça da Matriz, ficava em uma região central da cidade. O São Pedro veio a formar um conjunto arquitetônico com um prédio "gêmeo", a Casa da Câmara, inaugurada em 1874 e destruída por um incêndio em 1949, dando lugar ao atual Palácio da Justiça.

Seriam necessários 25 anos até que o Theatro São Pedro fosse inaugurado, após a constituição de três sociedades particulares consecutivas, a concessão de sucessivos empréstimos e até a realização de uma loteria para ajudar a financiar a empreitada. No meio do caminho, tinha uma guerra: a obra foi interrompida quando estava nos alicerces durante os 10 anos da Revolução Farroupilha, a partir de 1835. Àquela altura, a província já contava com os respeitados teatros Sete de Setembro, em Rio Pardo, fundado em 1832, e o Sete de Abril, em Pelotas, aberto no ano seguinte e ainda hoje em operação, embora fechado para restauro desde 2010.

Morte dentro do teatro


















Óleo sobre tela de autor desconhecido do acervo de Wolfgang Sopher (o São Pedro está à esquerda)
Reprodução / Divulgação Theatro São Pedro

A inauguração oficial do São Pedro finalmente ocorreu em 27 de junho de 1858 com a representação do drama Recordações da Mocidade pela Companhia Ginásio Dramático Rio-Grandense, do empresário João Ferreira Bastos. A abertura da solenidade e os intervalos do espetáculo ficaram aos cuidados da orquestra do maestro Joaquim José de Mendanha, mineiro pardo que compôs a música do Hino Rio-Grandense. Augusto Porto Alegre anotou sobre a histórica noite: "A fina flor da sociedade compareceu ao ato, dando o decote das damas e as casacas dos cavalheiros o tom chique da solenidade em que tudo ressumbrava completa alegria".

O cronista destacou também a decoração do teatro, com folhagens, flores e bandeiras iluminadas por um lustre central, "produzindo cintilações cambiantes as facetas de seus inumeráveis pingentes". Presente do governo francês à província, o lustre original, que funcionava com velas, perdeu-se depois de ter sido visto pela última vez em Rio Pardo, por volta de 1880, mas permaneceu no imaginário dos frequentadores do teatro. O atual lustre, reconstituído em 1984 por ocasião da restauração comandada por Eva Sopher, foi inspirado naquele. Clóvis Massa, professor do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRGS, explica que a inauguração do Theatro São Pedro deu início a uma nova fase na vida cultural da cidade:

– Possibilitou a organização de várias sociedades dramáticas particulares. O repertório passou a contar com o dramas de casaca, ou seja, peças com vestimenta da época, e não mais o teatro histórico de capa e espada, mas muitas vezes trazia ainda um realismo muito romantizado e até mesmo melodramático.

Uma das novidades do São Pedro em relação aos teatros que funcionaram anteriormente na cidade era a presença das mulheres, que se sentavam com os maridos no camarotes, o setor mais nobre, servidos pelos escravos que circulavam em escadarias posicionadas onde atualmente ficam os banheiros. Sim, comia-se e bebia-se no interior da casa. A plateia era ocupada por estudantes e profissionais liberais solteiros. Já as galerias recebiam as camadas populares, mais fragorosas e participativas. Assim, o Theatro São Pedro reproduzia as diferentes estratificações da sociedade da época, função que exerce ainda hoje de alguma forma. Para o crítico teatral e atual presidente da Fundação Theatro São Pedro, Antonio Hohlfeldt, o teatro era o retrato de uma sociedade que começava a se urbanizar:

– Saint-Hilaire (viajante francês) passou por Porto Alegre em 1821 e anotou que, diferentemente de outras províncias, aqui as mulheres não ficavam escondidas nas casas. Participavam das jantas, conversas, saraus. Temos uma visão machista do Rio Grande do Sul, mas havia uma relação mais equilibrada entre homens e mulheres do que em outros lugares do país. O fato de as mulheres irem ao teatro era um reflexo disso.

O repertório refletia a diversidade de gostos do público do século 19. Encenavam-se óperas e operetas. A arte teatral encantava o público com dramas românticos, mas também servia de meio para defender a abolição da escravatura e a causa republicana, temas de que se ocuparam dramaturgos gaúchos precursores do que hoje se conhece como arte engajada. Havia também atrações de viés popular, como comédias de costumes, shows de ilusionismo, espetáculos circenses e de variedades, levando a crítica a torcer o nariz ao lamentar o desinteresse da plateia pelas coisas "sérias" do palco. Um cronista da época declarou que o público porto-alegrense tinha "uma queda para palhaçadas", o que pareceu um exagero ao pesquisador do teatro Athos Damasceno Ferreira (1902-1975), tendo em vista que grandes espetáculos também atraíam os gaúchos. Gunter Axt aponta:

– Já no século 19, o São Pedro ficou muito conhecido pelas temporadas líricas. Era um verdadeiro acontecimento social. Tinha congestionamento de carruagens na porta do teatro. As damas usavam vestidões, faiscavam joias, farfalhavam sedas. Os homens vestiam fraque. Mas a turma não estava bem adestrada ainda: muita gente chegava atrasada. Enquanto a orquestra tocava, tinha gente levantando para dar passagem, mulheres fazendo barulho com seus vestidos. Tudo isso foi se ajustando com o tempo.

Era outra época mesmo, quando um crítico musical podia desafiar outro para um duelo de pistola a fim de resolver uma divergência sobre música de concerto. Quem conta é Athos Damasceno no livro Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no Século 19. O diretor de O Progresso, R. Ludwig, achava que os programas da Filarmônica Porto-Alegrense, um respeitado conjunto do século 19, estavam focados demais na escola italiana e deveriam incluir Bach, Beethoven, Mozart e Haydn. Acontece que a Filarmônica era queridinha da crítica musical local, o que rendeu a Ludwig acusações de "germanofilia". Foi assim que ele desafiou José Gertum, da Revista Musical, para resolver a questão de modo nada ortodoxo. Para saúde da imprensa musical, o duelo não foi levado a cabo.

Outra altercação, entretanto, terminou em tragédia. A temporada de 1895 foi marcada por muitas vaias, mas nada se comparou ao que ocorreu no São Pedro no dia 29 de dezembro. Quem acha que a sociedade está polarizada hoje é porque desconhece a rivalidade que havia entre os fãs da Companhia de Ismênia dos Santos e da Companhia Dramática de Apolônia Pinto. Depois de rumar para o interior do Estado, o grupo de Ismênia retornou à Capital quando o São Pedro já estava cedido à trupe de Apolônia, o que provocou prejuízos materiais à primeira. Irritados, os fãs de Ismênia não apenas vaiaram Apolônia e seus parceiros, como um conflito dentro do teatro levou à morte "por violentas cacetadas", segundo Athos, de um jovem italiano descrito como chefe de família. Apolônia quase cancelou a temporada, mas permaneceu com o apoio da imprensa, do público e, claro, da polícia.

Violista escapa de um acidente


















O São Pedro em 1968
Lahire / Agencia RBS

Como se vê, a crônica da época reserva histórias pitorescas. Em 1875, o São Pedro já era duramente criticado por seu mau estado de conservação, o que foi resolvido por um novo arrendatário que providenciou limpeza geral, pintura interna e externa, nova distribuição de gás e iluminação para o palco. Na virada do século, o teatro trazia a modernidade para a cena. Ao apresentar o repertório de sua companhia, em 1900, a atriz portuguesa Lucinda Simões foi saudada pela imprensa da época como o maior talento teatral que já pisara no palco rio-grandense. A empolgação justificava-se também pela estreia por estas plagas do drama realista Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen (1828-1906), que chocara a sociedade europeia com a história de uma mulher que abandona marido e filhos. Considerado hoje o pai do teatro moderno, o autor norueguês era desconhecido do grande público, mas familiar às "classes ilustradas" de Porto Alegre, segundo Athos, pelas traduções em francês de suas peças que circulavam na cidade.

Veio o século 20, e o São Pedro sediou, em 1901, sua primeira sessão de cinematógrafo, que levou multidões à sala de espetáculo, ávidas pela experiência de assistir a um filme no teatro. Novas sessões concorridas em 1903, 1904 e 1905 indicavam que esse negócio de cinema tinha futuro. Nos três primeiros meses de 1908, foram três sessões de teatro para 20 de cinematógrafo, segundo pesquisa de Guilhermino Cesar (1908-1993). Com a chegada do primeiro espaço destinado especificamente ao cinema em Porto Alegre, naquele ano, e a criação de cine-teatros, nos anos seguintes, o São Pedro aos poucos deixa de exercer essa função.

Nas primeiras décadas do século 20, o nobre palco recebeu algumas das maiores estrelas da música de concerto, como Arthur Rubinstein, Bidu Sayão e Andrés Segovia. Com o fim da II Guerra, mais ícones eruditos desembarcaram por aqui, entre eles Aaron Copland, Jacques Thibaud, Erno Dohnányi e novamente Rubinstein. Foi também no São Pedro que nasceu, em 1950, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), comandada até 1978 pelo maestro húngaro Pablo Komlós. Aquela que se tornaria a principal orquestra do Estado chegou a ser regida por ninguém menos que Villa-Lobos em 1953, feito eternizado com uma placa comemorativa no teatro.

O São Pedro, que já havia recebido figuras de proa do teatro nacional como Procópio Ferreira, Henriqueta Brieba, Itália Fausta e Dulcina de Moraes, foi palco, no pós-guerra, de companhias que moldaram o teatro brasileiro moderno. Apenas entre 1956 e 1959, estiveram por lá a Cia. Tônia-Celi-Autran (integrada por Tônia Carrero, Adolfo Celi e Paulo Autran), Cacilda Becker (com Walmor Chagas) e o Teatro Brasileiro de Comédia (com Nathalia Timberg). Em 1957, nasceu o Curso de Arte Dramática, atual Departamento de Arte Dramática da UFRGS, que ajudou a qualificar ainda mais a produção gaúcha. A dança não ficou para trás: pioneiras como Lya Bastian Meyer, Tony Petzhold e Chinita Ullmann executaram seus movimentos por lá.

Foi ainda nos anos 1950 que o interior do teatro ganhou nova estética. Os gradis de ferro dos camarotes foram cobertos com um tipo de gesso rosa, cor que marcou presença também na pintura das paredes, compondo um conjunto de gosto exótico com o plástico verde das poltronas. Gunter Axt observa que foram diversas as modificações internas no teatro ao logo de sua história:

– No século 19, as mulheres usavam saia sobre saia, mas nos anos 1950 já começavam a usar vestidos mais curtos. Como os rapazes que sentavam na plateia podiam ver as pernas delas pelos gradis, resolveu-se tapar com gesso. Imagine que horror.

Entre o final de 1960 e os primeiros meses de 1961, breve recesso para novas melhorias, mas o teatro reabriu para receber o Teatro de Arena de São Paulo, que marcaria a resistência cultural à ditadura instaurada no país em 1964. Também continuaram afluindo estrelas do calibre de Cacilda Becker, Paulo Autran e Cleide Yáconis. Mas a década de 1970 encontrou o São Pedro em péssima situação. Cupins, infiltrações e problemas na rede elétrica revelavam o cansaço do prédio. Em 1972, uma parte de um refletor caiu no palco durante apresentação da violista japonesa Nobuko Imai, quase atingindo seu instrumento. Destemida, a musicista seguiu tocando até o fim, mas o risco de segurança foi o sinal que faltava para que o teatro fosse efetivamente interditado, o que ocorreu no ano seguinte.

Naquele momento em que o Brasil já vivia sob um regime de exceção, Porto Alegre contava com grandes teatros como o Leopoldina (depois ocupado pela Ospa) e o Presidente, que recebiam produções nacionais, além de salas de menor porte para espetáculos independentes e experimentais que ainda estão em operação, como o Teatro de Arena de Porto Alegre e o Teatro de Câmara, este fechado para reforma desde 2014. O Renascença e a Sala Álvaro Moreyra seriam fundados em 1978.

Embora importantes, nenhum deles substituía o Theatro São Pedro, que precisava de uma verdadeira reconstrução. Eis que entra em cena uma personagem que teria papel definitivo nessa história. Imigrante judia que havia deixado a Alemanha em 1936, por causa do nazismo, Eva Sopher havia se tornado figura de destaque na cena cultural gaúcha por seu trabalho na Pró Arte, que promovia concertos eruditos internacionais na Capital, inclusive no São Pedro, nos anos 1960. Devido à atuação na área, recebeu um convite do jornalista Paulo Amorim, então no Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria de Educação do Estado, para comandar a restauração. O ano era 1975. Recusou porque estava envolvida com outros projetos, mas seu marido, Wolfgang Klaus Sopher, encontrou um argumento para convencê-la: "É melhor você aceitar. Caso contrário, são capazes de derrubar o teatro assim como fizeram com seu irmão gêmeo do outro lado da rua". Ele se referia, claro, à histórica Casa da Câmara, que deu lugar ao prédio modernista do Palácio de Justiça, inaugurado em 1968.

Então Eva aceitou.

O abraço que salvou Eva Sopher


















Manifestantes abraçam o São Pedro em 1991 pela permanência de Eva Sopher
Luiz Carlos Felizardo / Arquivo pessoal

A previsão era que a obra consumisse dois anos de trabalho, mas a reinauguração ocorreu apenas em 1984. Nesse ínterim, o miolo do teatro foi completamente demolido, restando praticamente apenas as paredes. Aos poucos, as madeiras deram lugar às vigas de aço. A partir das referências originais, foram recuperados os gradis dos camarotes, as portas e o suntuoso lustre central, pesando 600 quilos, com um mecanismo que permite baixá-lo para a realização da limpeza. As poltronas da plateia ganharam uma elegante estampa a partir de uma peça de veludo francês. E o forro foi decorado com pinturas de Danúbio Gonçalves, Léo Dexheimer, Plínio Bernhardt e Carlos Antônio Mancuso, arquiteto que comandou a obra, falecido em 2010. Sem falar nos modernos equipamentos de som e luz para o palco. Nada disso teria sido possível sem uma pessoa apaixonada à frente de tamanha empreitada, que exigiu poder de mobilização da opinião pública e levantamento de recursos.

– O processo foi muito bonito porque não foi dirigido por uma pessoa só – afirma Hohlfeldt. – Eva evidentemente comandou, mas seu grande mérito foi ser capaz de articular uma equipe multidisciplinar, que é uma palavra da moda agora. Trouxe várias cabeças, vários modos de ver, o que resultou nisso.

Foi assim que o Theatro São Pedro nasceu de novo no dia 28 de junho de 1984, perante os olhos de um público embasbacado. E devidamente treinado. Dois dias antes, Eva Sopher havia publicado em Zero Hora uma "bula" sobre o uso do teatro: "Atrasos, ruídos e chicletes usados devem ser engolidos habilmente, guardados no bolso ou então colocados em recipientes tais como cinzeiros e cestos de papel, jamais jogados no chão ou grudados embaixo da poltrona. Fumo: 'aquele' nunca; outros, só onde é permitido e onde tem cinzeiros". Os tempos mudaram, e hoje nenhum tipo de fumo é permitido ao público dentro do teatro.

A noite de reinauguração começou com o Hino Nacional, executado pelas mãos dos músicos da Ospa, sob a batuta de Eleazar de Carvalho, um de seus maestros memoráveis. Radamés Gnattali, que havia se apresentado no teatro quando jovem, retornou triunfante para dirigir sua Sinfonia Popular nº 1. Por fim, o grupo teatral Cem Modos encenou O Caso Térmita. A peça mostrava o julgamento de um cupim acusado de ter provocado o fechamento do teatro. Ao final, revelava-se que a verdadeira causa era o descaso das autoridades e a burocracia.

A estrela da primeira temporada de 1984 foi Bibi Ferreira, que encenou 41 concorridas sessões do musical Piaf. E assim o São Pedro retornou, mais glorioso do que nunca, à cena cultural brasileira, sediando espetáculos de teatro, dança, circo e música de artistas internacionais, nacionais e locais, sempre sob a supervisão do selo de qualidade de Eva Sopher, que se tornou a presidente da Fundação Theatro São Pedro. Sua determinação em preservar o prédio histórico frente à constante ameaça de sucateamento dos espaços públicos conquistou a admiração e o carinho não só do público gaúcho como dos diversos artistas que desembarcavam na Capital. O Theatro São Pedro se tornou uma fortaleza da cultura.

Uma única vez o cargo de Eva Sopher foi ameaçado. No início de 1991, correu a notícia de que o então governador eleito Alceu Collares tinha a intenção de substitui-la no São Pedro, assim como Sergio Napp (1939-2015) na direção da Casa de Cultura Mario Quintana. A reação da classe artística foi imediata. Segundo registro de Zero Hora na época, artistas como Antonio Fagundes, Fernanda Montenegro, Jô Soares e Marco Nanini enviaram mensagens a Collares pela permanência de Dona Eva. O gesto mais simbólico foi o abraço coletivo no prédio do teatro com cerca de 200 pessoas, no dia 14 de março, liderado pela Cia. de Ópera Seca, tendo Bete Coelho à frente. Gerald Tomas, diretor da companhia, escreveu um texto para Zero Hora de Munique: "São Pedro é dona Eva Sopher, pelo amor de Deus".

Durante o abraço coletivo, Eva acenava da sacada do prédio, que ganhou uma faixa preta de luto. Figuras da intelectualidade gaúcha, como Lya Luft, Olga Reverbel, P.F. Gastal e Tânia Carvalho, que era presidente da Associação de Amigos do teatro, marcaram presença no ato, que incluiu um abraço na própria homenageada. O movimento resultou na permanência de Eva e Napp em seus postos. Collares declarou: "O problema dela não surgiu de nós porque nunca imaginamos tirá-la da direção do Theatro São Pedro".

Um sonho ainda inacabado


















Foyer do Multipalco Eva Sopher hoje
Omar Freitas / Agencia RBS

Desde a época da reinauguração, Eva Sopher tinha o sonho de expandir o teatro para os terrenos contíguos. Depois de longas negociações envolvendo a prefeitura e o governo estadual, com doações e desapropriações, o projeto de um complexo cultural começou a tomar forma. A obra do que veio a ser chamado de Multipalco começou em março de 2003, com previsão de três anos de duração, a um custo de R$ 28 milhões. Diversas etapas foram inauguradas desde então, incluindo o estacionamento com três andares subterrâneos, área administrativa, salas multiuso, restaurante, Sala da Música, concha acústica (ainda sem equipamentos de som e luz) e foyer para eventos.

Já foram investidos R$ 42 milhões de patrocinadores e doadores individuais, financiados por meio da Lei Rouanet e da Lei de Incentivo à Cultura estadual, além de investimentos diretos, mas o Multipalco não está pronto. Ainda falta toda a parte interna do novo teatro italiano e do teatro-oficina, este voltado a espetáculos experimentais, embora o atual presidente do teatro, Antonio Hohlfeldt, tenha a ideia de já disponibilizar o teatro-oficina para uso do festival Porto Alegre Em Cena, em setembro. Traduzindo em números, será necessário captar ainda R$ 19 milhões para que a conclusão do Multipalco se torne realidade.

Em seus últimos anos, Eva Sopher se dedicou a capitanear uma ampla campanha nacional para arrecadar doações ao projeto, contando com campanha na televisão e apoio de estrelas nacionais. Foi uma causa que abraçou com a mesma intensidade com que havia se dedicado à reconstrução do teatro, entre os anos 1970 e 1980. Jamais desistiu. Mas no dia 7 de fevereiro deste ano, como uma atriz que entende ter cumprido seu papel mais importante, Dona Eva saiu de cena. Seu velório ocorreu dentro do teatro que foi sua segunda casa, ou talvez a primeira. As cinzas foram jogadas, em parte, junto à paineira de estimação, na área externa ao São Pedro. Outra porção foi levada a Santa Maria, onde está enterrado o corpo do marido. Seu legado foi de perseverança, como observa a designer Renata Rubim, uma das filhas de Eva:

– Acho que ela reforçou isso com o casamento, porque meu pai era um apoiador total. Se tivesse sido com outra pessoa ou sozinha, não se teria sido assim. Ela dizia que tinha todo esse vigor por causa do apoio dele. Minha mãe sempre foi muito informal, não tinha nada de convencional.

Inspirada em Eva, a filha Ruth Sopher Péreyron tornou-se também guardiã de um teatro, o Treze de Maio, em Santa Maria. Ela recorda:

– Minha mãe tem uma plaquinha no teatro, porque é nossa madrinha. Nos ajudou muito. Tudo que eu precisava, buscava com ela. Todo mundo diz que o Treze é o filhotinho do São Pedro, até porque tem metade do tamanho.

Também para os colegas do São Pedro Dona Eva representa uma inspiração. O presidente da Associação Amigos do Theatro São Pedro, José Roberto Diniz de Moraes, afirma que ela deixou como desafio a conclusão do Multipalco: 

– De certa forma, diria que ela viu isso aqui pronto. Não viu o grande teatro e o teatro-oficina, mas isso é detalhe. Quando concluímos o foyer, em dezembro, eu a chamei. Ela sorriu. Acho que gostou uma barbaridade do que viu.

Trinta e quatro anos depois da reabertura, também o prédio histórico está exigindo atenção. Hohlfeldt, que tem mandato até dezembro como presidente da Fundação Theatro São Pedro, planeja para o final do ano uma parada para reforma que incluirá a renovação de algumas poltronas, carpete e sistema de ar-condicionado. Também é considerada a inclusão de poltronas para obesos e a ampliação da área para cadeirantes. O custo estimado das melhorias é R$ 1,5 milhão. Depois de assumir, em março último, o cargo que pertenceu a Eva Sopher com o discurso de conclusão do Multipalco, Hohlfeldt afirma que estará à disposição do próximo governo estadual para continuar o trabalho, mas não pretende ter uma trajetória tão longeva quanto a de sua antecessora:

– Se ficarmos mais quatro anos, é muito provável que consiga terminar a obra. Tenho disponibilidade para ficar mais um período, mas não gostaria de ficar muito mais do que isso, sinceramente.

Pouco antes do aniversário de 160 anos, a Orquestra Theatro São Pedro (OCTSP), criada em 1985, também ganhou novo comando. Evandro Matté assumiu como diretor-artístico e regente principal no lugar de Antônio Borges-Cunha, que comandou o conjunto nos últimos 18 anos. Matté acumulará o cargo duplo com a direção artística da Ospa e da Orquestra Unisinos Anchieta. Um concerto comemorativo pelo aniversário do teatro será realizado pela OCTSP neste domingo (24/6), às 18h, sob regência de Matté, com participação da Cia. Municipal de Dança de Porto Alegre.

Coexistindo hoje com grandes salas de espetáculo, como o Teatro do Bourbon Country, o Auditório Araújo Vianna e o Teatro do Sesi, o Theatro São Pedro nunca perdeu um lugar especial no coração dos espectadores. Tornou-se insubstituível. De certa forma, conecta os gaúchos com o rio da história. Como se não bastasse, virou "pop", na expressão do pesquisador teatral Luís Francisco Wasilewski:

– Graças a Eva Sopher. Ela era uma figura pop. O fato de ter permanecido na direção foi um ganho para o São Pedro. Acompanhando outros teatros no Brasil, e percebo que, quando trocam o diretor, o novo acaba com o trabalho do anterior. Veja, por outro lado, a maneira como Eva Sopher conseguiu tratar aquela casa e se tornar querida entre os atores de fora daqui.

Se no século 19 o São Pedro era o centro da vida cultural e social da cidade, hoje talvez represente um espaço de resistência. Que está prestes a se tornar, com o Multipalco, um dos maiores complexos culturais do país. Mas restam desafios. Um deles é conquistar um novo público cuja atenção é disputada com uma infinidade de distrações pós-modernas. Outro é buscar um equilíbrio entre a programação de fora do Estado e a produção local. Artistas gaúchos historicamente reivindicam mais agenda no tradicional palco. Para Clóvis Massa, da Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRGS, a parceria entre uma sociedade particular e o poder público costurada por ocasião da construção do São Pedro, no século 19, marcou sua identidade:

– No meu entendimento, esse início nebuloso e conflituoso em relação à posse pública ou privada, e a falta de um projeto de descentralização cultural de parte dos órgãos públicos quando de sua atividade a partir de sua reinauguração, tornam o Theatro São Pedro um espaço público (administrado pelo governo estadual) mascarado de espaço privado, ou vice-versa.

Pensando no equilíbrio entre a programação local e de fora do Estado, o diretor artístico do São Pedro, Dilmar Messias (ele também um representante da cena gaúcha), celebra o atingimento de uma proporção de 82% de programação local nos espaços do teatro em 2017, entre palco principal, foyer e Sala da Música do Multipalco.

– O dado alentador é que o percentual de público se manteve estável mesmo com o aumento do espaço para a produção local, contrariando algumas previsões pessimistas – diz Messias. – Os projetos que criamos para este ano, como Mistura Fina, Teatro Hoje e a Mostra Pirlimpimpim de Teatro Infantil, também são voltados principalmente a atrações locais.

* Colaborou Fernando Corrêa

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/espetaculos/noticia/2018/06/como-o-theatro-sao-pedro-sobreviveu-a-160-anos-de-historia-no-rio-grande-do-sul-cjioy0nkw0idf01qoogsdnzkp.html

domingo, 17 de junho de 2018

Além de Roberto Marinho, veja outros colecionadores de arte que abriram suas casas ao público

Em diversas cidades, propriedades foram reformadas para se tornarem centros culturais

Uma coleção de arte particular pode ser o retrato do seu proprietário. Há os que guardam tudo em sua residência, os que doam as obras adquiridas para instituições já existentes e aqueles que constroem espaços específicos para os trabalhos. Quando decidem fazer isso na própria residência, a experiência se torna ainda mais pessoal. É o caso do Instituto Casa Roberto Marinho, inaugurado neste ano, na zona sul do Rio de Janeiro. Abaixo, veja outros colecionadores que transformaram suas casas em espaços para exibir sua coleção.

Instituto Moreira Salles 

(Rio de Janeiro, RJ)

A sede do Instituto Moreira Salles, na Gávea, no Rio de Janeiro, é uma mansão de 1948 que já foi o lar do embaixador Walther Moreira Salles. A construção moderna foi projetada por Olavo Redig de Campos e, assim como a Casa Roberto Marinho, tem jardins desenhados por Roberto Burle Marx. Atualmente, abriga exposições de arte contemporânea e de fotografia – especialidade do IMS, que possui 2 milhões de imagens –, café, cinema e reserva técnica com o acervo em música, literatura e outros. Veja mais em: ims.com.br
















Robert Polidori / Acervo IMS

Fundação Maria Luisa e Oscar Americano 

(São Paulo, SP)

Pouco conhecida, essa fundação ocupa um parque de 75 mil metros quadrados no Morumbi, em São Paulo. Além da área verde, com esculturas, a grande atração é a casa modernista onde viveu Oscar Americano – projetada por Oswaldo Arthur Bratke em 1950, está aberta ao público desde 1980. No local, está exposto o acervo da família, que inclui peças dos períodos colonial e imperial (desde mobiliário e prataria até pinturas do holandês Frans Post) e de artistas do século 20, como Portinari, Di Cavalcanti, Brecheret e Segall. Nos finais de semana, a fundação realiza atividades como recitais. Veja mais em: fundacaooscaramericano.org.br












Divulgação / Fundação Maria Luisa e Oscar Americano

Fundação Vera Chaves Barcellos 

(Viamão, RS) 

A artista plástica e colecionadora Vera Chaves Barcellos vive e trabalha em Viamão, onde também mantém a reserva técnica e o espaço expositivo da fundação que leva seu nome. A Sala dos Pomares, um prédio de 400 metros quadrados, recebe duas exposições de arte contemporânea por ano, além de diversas atividades paralelas. O acervo da fundação conta com mais de 2 mil obras de artistas jovens e consagrados do Brasil e do Exterior – entre eles, a produção da própria Vera e seus colegas do grupo Nervo Óptico e do Espaço N.O. Veja mais em: fvcb.com.br


















Omar Freitas / Agencia RBS

Centro de Arte Contemporânea de Inhotim 

(Brumadinho, MG)

Um dos maiores colecionadores de arte do mundo, o empresário siderúrgico Bernardo Paz transformou a sua fazenda no interior mineiro no maior museu de arte contemporânea do país. O terreno de 600 hectares virou uma reserva natural com pavilhões que exibem a coleção, com cerca de 500 obras, entre esculturas, gravuras e pinturas de artistas como Adriana Varejão, Cildo Meirelles, Tunga e Chris Burden. Veja mais em: inhotim.org.br


















Ricardo Chaves / Agencia RBS

Chácara do Céu 

(Rio de Janeiro, RJ)

A coleção do empresário Raymundo Ottoni de Castro Maya está dividida entre duas residências no Rio: a Chácara do Céu, em Santa Teresa, e o Museu do Açude, no Alto da Boa Vista. São cerca de 22 mil obras, entre pinturas, esculturas, azulejos, mobílias, pratarias e livros. O mais conhecido deles, o Museu da Chácara do Céu ocupa uma residência projetada por Wladimir Alves de Souza com traços modernos. Lá é possível ver exposições de peças da coleção, que inclui trabalhos de mestres brasileiros, orientais e europeus. Veja mais em: museuscastromaya.com.br


















Divulgação / Museu Chácara do Céu

Conheça a Casa Roberto Marinho, novo centro cultural que exibe uma das maiores coleções de arte do país

ZH visitou o casarão no bairro Cosme Velho, na zona sul do Rio de janeiro

Guignard, Pancetti, Portinari, Nery. Para a maioria de nós, esses são nomes fundamentais da arte brasileira. Para o jornalista e empresário Roberto Marinho (1904 – 2003), eram também amigos cujos ateliês frequentava, acompanhando a criação de obras que ajudariam a construir o modernismo no Brasil.

Foi a partir desse lugar privilegiado que o criador do Grupo Globo começou a compor sua coleção de arte, em 1939, quando tinha 35 anos. Ao invés de mirar grandes nomes, apostou em jovens promissores – aqueles sobrenomes do início deste texto e muitos outros que ajudou a projetar. Essa sua faceta de colecionador de arte e mecenas ganha visibilidade com o Instituto Casa Roberto Marinho, centro cultural inaugurado na residência onde o jornalista viveu, na zona sul do Rio de Janeiro. A bela mansão, no bairro Cosme Velho, tornou-se um lugar para ver arte moderna e abstracionismo informal, especialidades da sua coleção, que é considerada uma das 10 mais importantes do Brasil.

Desde a abertura, em 28 de abril, o espaço tem recebido, em média, 400 visitantes por dia. Quem chega deve circundar um canteiro de flores vermelhas, com estátuas e uma fonte, para chegar ao imponente casarão. A fachada rosa contrasta com o paredão verde da floresta da Tijuca, que emoldura o prédio como uma continuação do jardim. Em um dia claro, é possível enxergar o Cristo Redentor ao longe, acima do telhado.

Vale a pena demorar-se no jardim, um dos primeiros projetos privados do arquiteto paisagista Roberto Burle Marx (1909–1994). Ao som relaxante de uma queda d'água do Rio Carioca, que passa pela propriedade, o visitante é convidado a passear entre plantas tropicais e esculturas de artistas consagrados, como Pássaro (1969), em mármore carrara, de Bruno Giorgi, e Flexos 6 (2007), em metal, de Ascânio MMM.

A mansão foi construída em 1942, por encomenda do próprio Marinho, em estilo neocolonial inspirado no Solar de Megaípe, fazenda pernambucana do século 17. Marinho viveu lá de 1943 até a morte, em 2003, quando o local recebeu seu velório. Nessas seis décadas, a casa virou ponto de encontro da alta sociedade carioca, atraída por eventos que contavam com música, literatura, artes plásticas e teatro. Fotografias de arquivo mostram Dorival Caymmi, Amália Rodrigues e Pixinguinha fazendo shows na sala de estar e os atores Tônia Carrero e Paulo Autran apresentando uma peça nos jardins. Quando Marinho comprou duas pinturas para doar ao Museu de Arte de São Paulo (Masp), uma de Modigliani e outra de Renoir, fez questão de organizar uma festa para apresentar as obras à sociedade carioca. Eram tantas recepções a personalidades ilustres do Exterior e políticos que a casa foi apelidada de "sede informal do Itamaraty". Entre os convidados, estavam os ex-presidentes da república Juscelino Kubitschek e José Sarney. 

Hoje restam poucos vestígios desse passado glamoroso: no salão principal, ficou um piano de cauda, agora sem os retratos de família em cima. Sumiram sofás, mesas e tapetes. Para ver a residência mobiliada e conhecer sua história, os visitantes fazem fila para um pequeno cinema, nos fundos do térreo, que exibe continuamente o documentário Casa, do diretor Antonio Carlos da Fontoura. Os famosos flamingos, que eram criados por Marinho e sua esposa Lily, também sumiram. Foram substituídos por carpas já que o fluxo de visitantes da casa aumentaria muito.


Ainda que um canto do jardim guarde uma escultura abstrata assinada pelo próprio Marinho, de maneira geral, a presença do proprietário é discreta na casa. Segundo o antropólogo e curador Lauro Cavalvanti, que dirige o instituto, os filhos do colecionador não queriam uma instituição memorialista:

– A família tomou essa decisão de não fazer um culto à personalidade dele. 

Quando pergunto se transformar a casa em instituto era uma vontade de Roberto Marinho, o diretor não sabe responder, mas lembra das várias vezes em que a coleção foi exibida. Ele mesmo foi o curador de algumas, por isso foi convidado a assumir o centro cultural.

– O Roberto tinha vontade que a coleção fosse vista, por isso emprestava bastante as obras. Mas não falava sobre o que viria depois da morte.

A missão de Cavalcanti foi priorizar a arte e criar um centro de referência do modernismo brasileiro.

– Os museus de arte moderna apresentam muitas exposições de arte contemporânea. Aqui nos propomos a ser um lugar onde se pode ver arte moderna de maneira contínua.

Entre 2014 e 2018, o curador acompanhou o projeto de transformar a casa em centro cultural, executado pelo arquiteto Glauco Campello. O terreno ganhou um anexo para reserva técnica e um pavilhão com livraria, café e sala para oficinas e cursos. Enquanto o primeiro piso da mansão sofreu poucas modificações, o segundo foi transformado em uma série de galerias – atualmente, nada indica que um dia foram biblioteca e quartos, exceto um discreto registro na varanda ligada ao antigo dormitório de Marinho. Um elevador foi implantado para melhorar a acessibilidade.

A obra foi financiada com recursos próprios da família Marinho, sem recorrer a incentivos fiscais, mas o orçamento não é divulgado.

– Foi feito um esforço grande para pôr esse centro de pé. Não se recorreu a isenção fiscal, em um período de crise. É nosso objetivo retomar compras, mas não pelos primeiros dois anos. Primeiro, vamos fazer uma coleção sólida – diz o diretor.

Segundo Cavalcanti, a prioridade agora é costurar parcerias com outras instituições. A próxima mostra, em dezembro, incluirá peças do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Outro objetivo é estabelecer contatos com instituições vizinhas para melhorar o bairro, que costumava abrigar o Museu Internacional de Arte Naïf (Mian), hoje desativado. 
A coleção

A Coleção Roberto Marinho começou como uma aposta em artistas promissores da primeira metade do século 20, nomes como Portinari e Guignard, que assimilavam as vanguardas europeias ao mesmo tempo em que buscavam uma linguagem e temáticas distintamente brasileiras. Hoje, conta com 1.473 obras, entre pinturas, esculturas, gravuras e desenhos. Apesar de incluir estrangeiros, como Chagall, De Chirico e Léger, o foco do acervo é o modernismo brasileiro, especialmente o dos anos 1930 e 1940, e o abstracionismo informal – movimento das décadas de 1950 e 1960, composto por nomes como Antonio Bandeira, Iberê Camargo, Manabu Mabe e Tomie Ohtake.

Para adquirir as obras, Marinho contava com a ajuda de especialistas, mas era dele a palavra final. Quando a coleção ficou grande para as paredes da casa, passou a ser guardada em um local específico e era frequentemente emprestada para instituições. Entre 1984 e 2014, foram organizadas doze mostras da coleção em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Buenos Aires e Lisboa.


Atualmente, duas exposições estão em cartaz no casarão e poderão ser visitadas até o início de dezembro. Em uma pequena galeria do térreo, 10 Contemporâneos – A Casa reúne gravuras inéditas sobre o tema "casa". Encomendadas a 10 artistas contemporâneos (nomes do primeiro escalão, como Daniel Senise e Anna Bella Geiger), passaram a integrar a coleção Roberto Marinho. Mostras assim, em que artistas de hoje dialogam com o instituto e seu acervo, devem ser comuns na instituição. No jardim, também há novas obras, encomendadas especificamente para o local, como a instalação de Carlos Vergara que conversa com um conjunto de bambus e a escultura Mulher Nova 3 (2017), de Raul Mourão, que se move com o vento, apesar de ser de aço e ter 350 metros de altura.

Ocupando todo o segundo andar, está a exposição principal: 10 Modernos – Destaques da Coleção. Cavalcanti selecionou 124 obras dos artistas que melhor representam o acervo de Roberto Marinho e são também expoentes do modernismo brasileiro dos anos 1930 e 1940: Di Cavalcanti, Alberto Guignard, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Djanira, Burle Marx, Milton Dacosta, José Pancetti, Lasar Segall e Ismael Nery.

Como a coleção foi constituída a partir do gosto pessoal de Marinho, é inevitável se perguntar, por exemplo, o que lhe teria cativado em obras tão diferentes quanto um vaso de flores pintado por Portinari em 1950 e a soturna tela A Barca, do mesmo artista, de 1941. Ou por que preferiu adquirir três telas com o mesmo tema pintadas por Tarsila do Amaral. 

São paisagens com casas em montanhas, como O Touro (Paisagem com Touro), uma raridade de 1925 que o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) solicitou para sua retrospectiva da artista.

– Esse quadro iria para o MoMA, mas não queríamos desfalcar a exposição na abertura da casa. É uma pintura emblemática da primeira fase da Tarsila, uma das 10 obras mais importantes da pintora – explica o curador.

Quatro telas revelam que o Burle Marx pintor tinha muito em comum com o Burle Marx paisagista: as formas humanas são arredondadas como os canteiros do jardim; nas naturezas-mortas, o fascínio pelas plantas é expresso nas folhas verdes exuberantes, que protagonizam os quadros. De Guignard, há uma sala inteira.

Ismael Nery é o artista com mais trabalhos na coleção: são 70, na maioria, desenhos. Obras com uma figura bissexual ou o encontro de Cristo e Lênin mostram como o artista se debruçava sobre temáticas à frente do seu tempo – e, segundo o curador, recebia incentivos de Marinho por isso.

Com 29 obras de Pancetti, Marinho era um dos principais colecionadores do artista no país e costumava expor suas obras em uma sala específica. As marinhas, gênero pelo qual o artista é mais conhecido, estão alinhadas em uma parede, como se costuradas num mesmo horizonte. E um quadro recebe destaque: Boneco (1939), que Marinho recebeu de presente do artista e amigo, era o seu favorito. Ao olhar para a figura, o empresário fazia uma viagem introspectiva à própria infância. Apresentado junto a um texto seu, o quadro torna-se mais íntimo do que qualquer objeto pessoal que poderia estar exposto.

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/artes/noticia/2018/06/conheca-a-casa-roberto-marinho-novo-centro-cultural-que-exibe-uma-das-maiores-colecoes-de-arte-do-pais-cjig63g6n0gp501qoiscwber4.html



















Recanto do colecionador: jardins e fonte recebem o visitante. Em décadas passadas, mansão de Marinho era apelidada de “sede informal do Itamaraty”
Roberto Teixeira / Divulgação Casa Roberto Marinho


















Jardim: obras de Carlos Vergara e Ascânio MMM foram instaladas do lado de fora da mansão
Jaime Acioli / Divulgação Casa Roberto Marinho


















Dorival Caymmi tocou na casa em 1948
Arno Kikoler / Acervo Roberto Marinho


















Paulo Autran (à esq.), Marinho (paletó branco) e Tônia Carrero (a última à dir.) posam após apresentar peça na casa em 1949
Arno Kikoler / Acervo Roberto Marinho


















O arquiteto e antropólogo Lauro Cavalcanti está a frente do Instituto
Roberto Teixeira / Divulgação Casa Roberto Marinho


















Exposição "Modernos 10", em cartaz até dezembro, tem pinturas de Burle Marx, que também projetou o jardim da casa
Divulgação / Casa Roberto Marinho

























Escultura de aço "Mulher Nova 3"
Jaime Acioli / Divulgação Casa Roberto Marinho




















"O Touro (Paisagem com Touro)" (1925), de Tarsila do Amaral, é um dos destaques da coleção
Jaime Acioli / Divulgação Coleção Roberto Marinho





















"Rio de Janeiro" (1926), de Ismael Nery
Jaime Acioli / Divulgação Coleção Roberto Marinho

























"Boneco" de José Pancetti, 1939, já foi apontado por Roberto Marinho como o seu quadro preferido
Jaime Acioli / Divulgação Coleção Roberto Marinho

Do Olímpico a casarões do Centro Histórico, Porto Alegre vê ruínas proliferarem

Imbróglios judiciais, proprietários sem recursos ou interesse e omissões do poder público são pano de fundo para uma Capital com cara de abandono

Seja para qual for o lado que o porto-alegrense se desloque, é grande a chance de ele deparar com edificações cujo estado de precariedade varia do abandono ao estágio final, de ruínas. Partindo do Centro Histórico, a poucos metros uma da outra, duas delas entopem a Rua Riachuelo, uma das principais artérias do bairro: a Confeitaria Rocco — que chega aos 105 anos somando mais de 20 de abandono — e a antiga Casa Azul, cujo risco de desabamento fez com que a calçada em frente fosse interditada há três semanas. Subindo pela Avenida Independência, casarões que abrigavam casas noturnas se tornaram portas cerradas, e pichações se espalham como uma infecção em curso. Já em direção ao sul da cidade, o Estádio Olímpico se tornou um enorme hematoma, com cada vez menos vida no seu entorno. Até dentro dos parques, há surpresas desagradáveis como os restos mortais do Café do Lago, na Redenção, hoje resumido a um deque pouco confiável e a um buraco escuro.

Por trás das fachadas depredadas, se multiplicam histórias de imbróglios judiciais, proprietários sem capacidade financeira (ou interesse) de resolver o problema e omissões ou mesmo ações infelizes do poder público que passam ao largo dos principais prejudicados: os cidadãos, que acabam influenciados pelo estado de abandono da cidade.

— Não importa que os prédios não sejam públicos. Quando eles entram em estado de degradação, a questão deixa de ser de direito privado. O direito à cidade é de todos, e a propriedade envolve uma responsabilidade. Quanto mais abandono estiver no entorno, mais as pessoas absorvem uma mensagem de "virem-se!" — declara Betânia Alfonsin, diretora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e professora de Direito Urbanístico da Faculdade do Ministério Público.

Leila Mattar, professora de Arquitetura e Urbanismo da PUCRS, dedicou seu mestrado e doutorado a uma das regiões que percorreram todo o ciclo de apogeu, decadência e abandono: a Rua Voluntários da Pátria. De um bairro-cidade às margens do Guaíba, no final do século 19, a via foi descaracterizada pela vizinhança com a Avenida da Legalidade e da Democracia e sucumbiu. Leila alerta para um dos principais fatores na degradação da saúde de uma região:

— A demora é crucial. Quando uma região perde o uso, os imóveis ali perdem a sua finalidade inicial e são substituídos por usos marginais. Quanto mais tempo se passa entre uma região perder a sua vocação e ganhar uma nova, menor a chance de ela se recuperar.

A quase autópsia que Leila faz da Rua Voluntários da Pátria é uma doença em curso na Azenha, onde o que resta do Olímpico aguarda por uma solução entre o Grêmio e a construtora OAS, responsável pela nova casa do clube no bairro Humaitá. Usada como moeda de troca pelo clube para uma eventual compra do novo estádio, a entrega das chaves do Olímpico não tem data para ocorrer. Algo com que João e Marcelo dos Santos, pai e filho, sequer se preocuparam ao mudar a metalúrgica da família para os fundos do estádio, em 2013, último ano do Grêmio na região.

— Fui aos coquetéis realizados pela construtora e não existia essa preocupação de não ser demolido. Aliás, a única preocupação era se a implosão iria causar algum risco. Nas apresentações, tudo era muito bonito — declara João.

Passados quase cinco anos, as únicas portas abertas nos fundos do estádio são as da metalúrgica Qualiserv e de um minimercado — este, segundo o proprietário Antônio Viesseri, assaltado pela última vez há 20 dias. Um a um, os postes de rua deixaram de funcionar e nunca foram consertados. João se obrigou a comprar refletores para assegurar iluminação ao menos na fachada da empresa. Depois de fazer por conta a capina da rua, João cogita pintar o meio-fio. Todos os materiais do estádio que podiam ser furtados e revendidos se foram. 

Respiro em meio ao caos 

De volta a Porto Alegre há 15 dias, depois de uma temporada em Londres, o professor Benamy Turkienicz, coordenador do Núcleo de Tecnologia Urbana da UFRGS, conta uma experiência que viveu no Exterior:

— Uma inspetora da administração do distrito onde eu vivia pediu autorização para entrar na minha residência e verificar uma denúncia. O meu vizinho de trás teria deixado um fio solto nos fundos do prédio — conta Turkienicz. — Quando você tem a quem recorrer quando acontece esse tipo de problema e aquele órgão tem a obrigação e um prazo para te dar retorno, você denuncia. Me preocupa chegarmos ao ponto em que a cidade está, tão degrada que ninguém reclama mais.

O professor, no entanto, demonstra otimismo com iniciativas pontuais em Porto Alegre como o Quarto Distrito, no bairro Floresta, cujo plano de revitalização — o Masterplan — ele coordenou. Prestes a se reunir com a gerência de Relações Internacionais da prefeitura, na sexta-feira, para debater os rumos do projeto, Turkienicz enxerga na região os primeiros remédios de uma revitalização bem sucedida. Como o engajamento da comunidade, nos novos bares e espaços de convivência, e a "reconvenção funcional" dos espaços da região.

— Quando uma região perde a sua vocação, você precisa estudar novas rapidamente e se basear no que há perto dali. Por exemplo, o aeroporto. Essa mesma Fraport, empresa que passou a administrar o Salgado Filho, costuma ter interesse em empreendimentos no entorno dele. Em Frankfurt, ela tem um hospital perto do aeroporto por onde circulam mais de 80 mil pessoas por ano. Por que não algo assim? Quando o poder público não tem recursos, ele precisa ser facilitador, buscar financiadores e incentivar a participação popular, inclusive nas ideias.

Professora de Arquitetura e Urbanismo da PUCRS, Cibele Figueira faz coro. Mais do que chamar a população a ter ideias, sugere que ela comece com um olhar mais carinhoso para espaços que já pertencem ao poder público.

— Tenho uma aluna que realizou um projeto incrível na Cidade Baixa ao longo da José do Patrocínio de fora a fora. Envolvia o Largo Zumbi dos Palmares, aquele terreno do DEP próximo à Rua da República e terminava lá nos fundos da EPTC. Três terrenos enormes e públicos. É esse tipo de ideia que precisa florescer. Precisamos sonhar mais alto.

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2018/06/do-olimpico-a-casaroes-do-centro-historico-porto-alegre-ve-ruinas-proliferarem-cjiglhuh60gwe01qozji92w5m.html


















O que resta do Estádio Olímpico aguarda solução entre o Grêmio e a OASRobinson Estrásulas / Agencia RBS


















Casa Azul fez Riachuelo ser interditada
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Antes um dos mais charmosos endereços da Capital, Café do Lago virou só restos da estrutura
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Confeitaria Rocco: mais de 20 anos de abandono
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Construções deterioradas na Avenida Independência
Robinson Estrásulas / Agencia RBS