segunda-feira, 1 de maio de 2023

Em Cachoeira do Sul, a tafona da memória


Tombada como Patrimônio Histórico do município e do Rio Grande do Sul, fazenda estará aberta à visitação a partir de 27 de maio

Por Tau Golin
Jornalista e historiador

Quando se chega na Fazenda da Tafona, se ingressa em uma especialíssima plataforma do tempo. A memória humana do lugar se alarga por 12 mil anos. Encontra-se com populações paleoindígenas de caçadores-coletores, povos pampianos, etnias Guarani e Jê meridional, semeadores das primeiras lavouras, inventores da erva-mate. Territórios de uso e pertencimento que o colonizador primeiro reconheceu na forma tutelada e depois escriturou como propriedade. Nos séculos 17 e 18, na forma de estância e capela dos missioneiros de povos jesuíticos-indígenas, destinados aos usos coletivos e das famílias extensas. Mapas antiguíssimos plotam a estância do Povo de São Lourenço e a capela consagrada a São Miguel nas terras do Piquiri, afluente do Baixo Jacuí. Depois, o espaço foi abrangido pelas disputas das crises desencadeadas pelos tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), na segunda metade dos Setecentos, até que a Guerra da Conquista das Missões (1801) estabeleceu sobre ele o domínio luso-brasileiro.

A escrituração privada das terras do Baixo Jacuí se deu mediante a doação pelo Estado da cota de sesmaria de campo aos povoadores ainda durante o período de fronteiras conflituosas e em demarcação nas últimas décadas dos Setecentos. Essa forma de intrusão implicou na produção e na composição social dos habitantes. O cotista se estabeleceu como senhor, latifundiário que incorporou ao trabalho de sua propriedade a força de trabalho dos livres, os agregados, os serviçais, as parcerias de posteiros e a terrível engrenagem da escravidão.

A fazenda São José ainda preserva a sua Atafona, engenho de farinha de mandioca e polvilho, de goma e tapioca do século 19. Suas engrenagens realimentam o imaginário do mundo real em que o Rio Grande se assenta, a espacialidade que ainda se encontra na névoa da laudação identitária sulina, nas práticas da convivência social, na proclamação dos direitos. Está ali o mundo escravocrata, o negro supliciado, as famílias de cativos arranchadas, os grilhões em nossas consciências, o compasso dos bois tafoneiros na memória perversa do ufanismo.

A Fazenda da Tafona é o semióforo para imergir no mundo escravocrata, que moldou a oligarquia através da mais bárbara forma de exploração do trabalho e desumana organização social. Seu espaço estimula a imaginação. As engrenagens do engenho são condutos para entender a senzala, o suplício das atividades, a realidade como barbárie, os humanos escravizados consumidos como a lenha que gerava o fogo que desidratava a mandioca moída e a transforma em farinha. Aperta nosso passado como prensa a mandioca ralada, cuja calda fermentada decantava o polvilho e a goma, magias alvas da invenção produtivas para escrever nossa história.

A exemplo de muitos latifúndios formados na Colônia e no Império, as sucessivas heranças retalharam a fazenda São José em diversas propriedades. Poderia ter sido preservado somente o aspecto poético e aprazível de um ambiente rural-bucólico que já não depende mais de sua produtividade. Entretanto, por capricho do destino, dedicação, consciência afetiva e republicana das últimas gerações, a sede e a tafona foram preservadas e transformadas nesse lugar que nos mergulha no passado para compreender o presente e desafiar o futuro. O esforço contemporâneo para manter a Fazenda da Tafona como lugar de memória pela materialidade das engrenagens e pela documentação histórica preserva também a sensibilidade humana e a responsabilidade histórica das pessoas envolvidas no projeto. Fazer uma imersão nela, compreender seu espectro histórico e social, eleva e potencializa a consciência para entender e preparar-se para “lidar” com os entulhos da escravidão que insistem em sobreviver no capitalismo.

Fazer uma imersão na Fazenda da Tafona é alargar o conhecimento da nossa história e a possibilidade de sensibilização sob paradigmas humanos que podem incidir em nosso tempo. Essa possibilidade está ofertada ao público com o seu tombamento como patrimônio histórico de Cachoeira do Sul e do Estado do Rio Grande do Sul, e o seu espaço passa a ser aberto à visitação a partir de 27 de maio.

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