Durante quase dois séculos, o mais antigo farol do Rio Grande do Sul permaneceu intacto mesmo diante dos intensos temporais que avançam sobre a
Lagoa dos Patos. Em determinadas épocas, foi o único da região a não precisar de reparo após uma tempestade. Porém, o Capão da Marca, localizado em
Tavares, no Litoral Médio, está quase tombando diante do vandalismo e do abandono.
Nos últimos anos, foi alvo constante de pichações ao longo da estrutura metálica de 19 metros de altura e de depredações, que acabaram inutilizando-o. Segundo moradores locais, o equipamento ficou no escuro por meses. Em operação, seu alcance era de 13 milhas náuticas, ou 23,7 quilômetros. Tratava-se de um referencial para pescadores e navegadores. No último dia 2, alertados pela reportagem de GZH, militares do Serviço de Sinalização Náutica do Sul, da Marinha do Brasil, fizeram o reparo da lâmpada que encontrava-se sem bateria.
Instalado a 50 metros das águas da Lagoa dos Patos, o Capão da Marca sempre foi divulgado como um ponto turístico local. Mas seu isolamento, em uma área com habitações apenas a mais de um quilômetro de distância, e a falta de sinalização nos arredores do município indicando tratar-se de um monumento histórico fizeram dele alvo constante da destruição.
Morador de uma das propriedades mais próximas, o agricultor Arlon Brum, 23 anos, cresceu observando a imponência da torre inaugurada em 1849. Integrante da terceira geração da família a viver na região, Arlon recorda das conversas com o avô, Zaldo Gonçalves, que era amigo do antigo faroleiro. Certa vez, foi Zaldo que o socorreu no meio da noite, na escuridão. Com o carro atolado nas dunas, o único morador do farol precisava de um reboque.
Namorada de Arlon, a gestora ambiental Juliana Pereira, 27 anos, de
Mostardas, cresceu ouvindo histórias parecidas do bisavô, Luís Rocha, antigo tropeiro da região, que costumada levar mantimentos aos que cuidavam do farol. Arlon conta que, até a adolescência, subia no alto da torre para ver as belezas naturais da região. A porta não tinha tranca, e o faroleiro já não trabalhava mais no local. Com o tempo, visitantes e moradores passaram a invadir e destruir a edificação. Nas paredes externas, há nomes e indicações de cidades do sul do Estado, da
Capital e da
Serra.
Uma das últimas partes arrancadas foi a bateria usada para a iluminação noturna do farol. Arlon conta ter visto o equipamento rolando nas areias, em 2020:
– O farol está se desmanchando e ninguém parece se importar. Um dia foi ponto turístico. Infelizmente, virou ponto de vandalismo.
Como uma das últimas alternativas para salvá-lo, uma das janelas de vidro foi trocada por uma placa de metal, e a única porta de entrada, soldada pelo Serviço de Sinalização Náutica do Sul. Hoje, não se pode mais entrar na área interna do farol, apenas circundá-lo, já que ele está trancado.
Em resposta a questionamentos enviados por GZH, a assessoria de comunicação do Comando do 5º Distrito Naval, da Marinha do Brasil, informou que “o farol deixou de ser guarnecido em 1985, em virtude de substituição do antigo sistema (acetileno) por lanterna automática. Quanto à casa do faroleiro, não há informações sobre a destinação dela”. A Marinha também informou que, “durante inspeção realizada em outubro de 2020, verificou-se a ocorrência de furtos dos equipamentos e vandalismo na estrutura do farol. Dessa forma, foi priorizada a recuperação de toda a parte de sinalização para garantir a segurança da navegação na região. Para evitar outros furtos, decidiu-se por lacrar a porta, por meio de solda”. O órgão confirma que “que está agendada para fevereiro a realização dos reparos estruturais”.
Pesquisadora da região há 35 anos, a historiadora Marisa Guedes, de Mostardas, lamenta a situação do farol, considerado por ela uma relíquia histórica. Marisa, que pesquisou documentos e os jornais brasileiros de 1840 a 1930, afirma: Dom Pedro II não passou pelo Capão da Marca para inaugurá-lo, como costumam indicar companhias de turismo, sites especializados e até moradores.
Segundo ela, durante a
Revolução Farroupilha, o império pediu o balizamento da Lagoa dos Patos para ter uma navegação mais segura. No pós-guerra, Dom Pedro II veio ao Estado entre dezembro de 1845 e janeiro de 1846. Mas não para inaugurar o farol. O ex-secretário de Turismo de Tavares, Luiz Agnelo de Tavares, relatou a existência de uma placa de bronze indicando que Dom Pedro II havia inaugurado o farol. A placa foi roubada.
– O que encontrei, que pode ter confundido as informações, é que o Jornal D. Pedro II, do Estado do Ceará, noticiou a inauguração do Farol Capão da Marca da seguinte forma: “‘Pharol – no dia 25 do mês passado foi inaugurado o Pharol Capão da Marca no Rio Grande do Sul’. Fortaleza, domingo, 24 de abril de 1881” – conta Marisa.
Em 1847, relata a historiadora, o conselho administrativo da província do Rio Grande do Sul determinou a construção dos faróis do Estreito, onde hoje é
São José do Norte, de Cristóvão Pereira, atual Mostardas, e de Itapuã, em
Viamão. Eles seriam erguidos em alvenaria e demorariam mais de dois anos para serem concluídos. Mas um naufrágio na Lagoa dos Patos fez o governo erguer um farol provisório de madeira no Capão da Marca, onde hoje é Tavares.
Em meio às obras dos demais, uma grande tempestade destruiu parte das construções, e o único a resistir aos fortes ventos foi o de Capão da Marca – mesmo sendo de madeira. A torre existente até hoje deu mais robustez à construção. Ela chegou diretamente da França em 20 de novembro de 1879 e levou três meses para ser montada.
– Algumas pessoas falam que o Cristóvão é o primeiro farol do Estado por ter sido inaugurado em 1858. Os mais antigos não contavam os provisórios como faróis. Mas há a lei da inauguração do Capão da Marca, de 1849 – explica Marisa.
Desde 1926 o Capão da Marca tem como característica luminosa o lampejo “encarnado” (vermelho) longo (dois segundos), intercalado com oito segundos apagado.