O homem, para se orientar, ou em busca de referência, precisa ler o ambiente em que se encontra.E isto ajuda na percepção que o usuário tem do espaço ao seu redor, e esta leitura, dependendo se é fácil ou difícil, nos mostra o quão legível é o espaço, e a relação que o habitante tem com ele.
Na nova realidade que começa a se impor, o ser humano está deixando de assumir o estatuto de extraterritorialidade e o mundo material deixando de ser um dado intangível.A arquitetura, o espaço urbano, o lugar, tornam-se mais permeáveis a ação do homem, e estes estão expostos à realidade de suas ações, bem como de seus medos e desejos.E. Hall exemplifica bem isto, ao dizer que “o homem e suas ações constituem um sistema inter-relacionado”. É um erro agir como se os homens fossem uma coisa e a sua casa, a rua, seu bairro, sua cidade, fossem algo diferente (1). Ao considerarmos qualquer análise sobre a percepção do homem no espaço que habita, temos que levar em conta todos os fatores que influenciam essa percepção. Para Kevin Lynch, a imagem è formada pelo conjunto de renovações experimentadas ao observar e viver em determinado ambiente. E essas imagens resultam desta relação. Porém, o sentido que o observador dá para o que vê pode variar de pessoa para pessoa e estas diferenças dependem de suas características individuais, mas também das caraceterísticas sociais e culturais (2). E esta sobreposição de imagens individuais gera a imagem publica da cidade e também a memória coletiva.
Os ambientes construídos pelos homens através dos tempos guardam a memória das idéias, das pràticas sociais e sistemas de representação dos indivíduos que ali convivem. Porém é impossível querer manter integralmente a memória materializada na produção cultural. O processo de ativação da memória dos indivíduos, implícito na ação de preservação do patrimônio cultural, corresponde a programar o esquecimento e controlar seletivamente aquilo que considera importante. Em uma analise de tombamento ou requalificação de projetos arquitetônicos, por exemplo, temos que voltar a atenção para os elementos que serão mantidos e ficarão como legado.
Segundo Walter Benjamim, a memória é constituída de impressões, de experiências e sua importância e significado especial estão no fato de que ela é o que nós retemos e o que dá a nossa dimensão de sentido no mundo.A arquitetura e os lugares da cidade constituem o cenário onde nossas lembranças se situam e, na medida que essa arquitetura e esse lugar fazem alusão a significados simbólicos, evocam narrativas relacionadas às nossa vida, e assim, a maneira com entendemos nossa experiência no espaço, converte-se em nossa realidade e nos dá sentido ao mundo físico (3).
Como mostra Maria Alice Rezende Carvalho, “uma praça de grandes manifestações, uma esquina boêmia, um píer na praia, um café centenário, um edifício histórico, são fundamentos de uma cidade análoga, que se repõe insistentemente, mesmo que a cidade real se altere” (4).Portanto, o conjunto de recordações que emergem da cidade nos reporta para a memória urbana, que é a realidade que marca nossa própria fugacidade na história, ao mesmo tempo em que anuncia a possibilidade de transcendermos nossa temporalidade individual.
Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, discorre a respeito das imagens que emergem do “fundo poético do espaço da casa”, afirmando que “é exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas com o devaneio que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós”.Afirma ainda que “todo o espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa”, e a preciosidade está na proteção que a casa oferece ao sonhador, na paz de se poder descansar, permitindo que esse devaneios produzam “valores que marcam o homem em sua profundidade”, Um espaço feliz é um lugar que provoca, pacifica e gera uma sensação de acolhimento, instiga a troca e o conhecimento e desperta uma ligação afetiva em quem nele vive, pela memória que persiste nas pedras, solidificando imagens, identidades e signos (5).
Na visão de Bachelard, a lembrança tem função primordial no espaço, atribuindo-lhe a condição de âncora da memória: “o inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas”. Todos os espaços com os quais estabelecemos uma relação de intimidade adquirem “valores oníricos consoantes”. São justamente as lembranças localizadas na região da intimidade que nos dão o sentido de valorização dos aposentos, praças, ruas, edifícios e paisagens que constituem patrimônios da história da humanidade, de uma determinada sociedade ou das histórias íntimas e individuais. Os devaneios suscitados pelas lembranças convidam-nos à imaginação e provocam transformações nas profundezas do ser. A ausência de possibilidade de devanear gera, ao contrário, o estreitamento da imaginação e a acomodação em relação à realidade. Em outras palavras: a ausência do sonho, do devaneio, impede a construção de utopias. É neste sentido, e não como tentativa de um resgate de um tempo perdido ou de uma cultura já morta, que a preservação da arquitetura e dos ambientes urbanos adquire importância (5).
Em uma linha mais contemporânea, Aldo Rossi em “A Arquitetura da Cidade”, apresenta uma teoria geral da cidade, fundamentada na análise da cidade histórica.Em contraposição ao urbanismo “arrasa – quarteirão”, surge à noção de lugar ou genius loci – conceito teórico – filosófico que e refere a um campo perceptivo resultante, na definição de Rossi, da “relação singular e, ao mesmo tempo, universal, entre certa situação local e as construções existentes naquele local” (6). Já Kenneth Frampton desenvolve a teoria do lugar em contraposição a idéia de totalidade, norteadora das idéias de proposição da cidade modernista. Para Frampton, o espaço não deve ser tratado como algo abstrato, mas como o lugar de habitação dos homens. Formula então a proposta de um regionalismo crítico, onde a questão do lugar é pensada a partir de suas significações e referências históricas, geográficas e culturais (7).
O ser humano sempre teve uma "necessidade pelo passado", e os traços do passado da cidade - suas ruínas - são, simultaneamente, sinais de um passado imaginado que tem o poder de nos reconfortar, como sinônimo de uma proximidade; sinais de um passado artístico; marca de uma continuidade e de um finalismo. Os monumentos históricos funcionam então como representações ou ícones de um passado atemporal, uma criação artística do passado e simbólica do presente, dentro de um sentido de eternidade.A relação que o indivíduo mantém com o espaço que o cerca, é o que mais influencia na sua forma de uso, significação e valorização.E nossa memória, constituída de impressões, de experiências, é o que nós retemos e o que nos dá a exata dimensão do que percebemos e sentimos através do nosso lugar no mundo.
Eder Santos Carvalho
Encruzilhada do Sul, Outubro de 2009
Notas:
1
HALL, Edward. “A dimensão oculta”. Apud ELALI, Gleice Azambuja. Psicologia e arquitetura: em busca do locus interdisciplinar.
2
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 51.
3
Ver, a esse respeito, AGGIO, Sandra Mara, Cidade e Memória em Walter Benjamim in revista Caramelo , n◦ 8, São Paulo: FAU-USP, nov./95, pp. 153 – 162.
4
CARVALHO, Maria Alice Rezende de, Quatro Vezes Cidade, Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 96.
5
BACHELARD, Gaston, A Poética do Espaço, São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp.25 e 26.
6
ROSSI, Aldo, A Arquitetura da Cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 185.
7
FRAMPTON, Kenneth, História Crítica de la Arquitetura Moderna, Barcelona: Ed. G. Gilli, 1981.
Bibliografia:
Ortegosa, Sandra Mara - Cidade e memória: do urbanismo “arrasa-quarteirão” à questão do lugar – Artigo – Portal Vitrúvius – Setembro 2009
Almeida, Eneida de e Bogéa, Marta – Esquecer para preservar – Artigo – Portal Vitrúvius – Dezembro 2007
Scocuglia, Jovanka Baracuhy C., Chaves, Carolina e Lins, Juliana – Percepção e memória da cidade: o Ponto de Cem Réis – Artigo – Portal Vitrúvius – Janeiro 2006
Na nova realidade que começa a se impor, o ser humano está deixando de assumir o estatuto de extraterritorialidade e o mundo material deixando de ser um dado intangível.A arquitetura, o espaço urbano, o lugar, tornam-se mais permeáveis a ação do homem, e estes estão expostos à realidade de suas ações, bem como de seus medos e desejos.E. Hall exemplifica bem isto, ao dizer que “o homem e suas ações constituem um sistema inter-relacionado”. É um erro agir como se os homens fossem uma coisa e a sua casa, a rua, seu bairro, sua cidade, fossem algo diferente (1). Ao considerarmos qualquer análise sobre a percepção do homem no espaço que habita, temos que levar em conta todos os fatores que influenciam essa percepção. Para Kevin Lynch, a imagem è formada pelo conjunto de renovações experimentadas ao observar e viver em determinado ambiente. E essas imagens resultam desta relação. Porém, o sentido que o observador dá para o que vê pode variar de pessoa para pessoa e estas diferenças dependem de suas características individuais, mas também das caraceterísticas sociais e culturais (2). E esta sobreposição de imagens individuais gera a imagem publica da cidade e também a memória coletiva.
Os ambientes construídos pelos homens através dos tempos guardam a memória das idéias, das pràticas sociais e sistemas de representação dos indivíduos que ali convivem. Porém é impossível querer manter integralmente a memória materializada na produção cultural. O processo de ativação da memória dos indivíduos, implícito na ação de preservação do patrimônio cultural, corresponde a programar o esquecimento e controlar seletivamente aquilo que considera importante. Em uma analise de tombamento ou requalificação de projetos arquitetônicos, por exemplo, temos que voltar a atenção para os elementos que serão mantidos e ficarão como legado.
Segundo Walter Benjamim, a memória é constituída de impressões, de experiências e sua importância e significado especial estão no fato de que ela é o que nós retemos e o que dá a nossa dimensão de sentido no mundo.A arquitetura e os lugares da cidade constituem o cenário onde nossas lembranças se situam e, na medida que essa arquitetura e esse lugar fazem alusão a significados simbólicos, evocam narrativas relacionadas às nossa vida, e assim, a maneira com entendemos nossa experiência no espaço, converte-se em nossa realidade e nos dá sentido ao mundo físico (3).
Como mostra Maria Alice Rezende Carvalho, “uma praça de grandes manifestações, uma esquina boêmia, um píer na praia, um café centenário, um edifício histórico, são fundamentos de uma cidade análoga, que se repõe insistentemente, mesmo que a cidade real se altere” (4).Portanto, o conjunto de recordações que emergem da cidade nos reporta para a memória urbana, que é a realidade que marca nossa própria fugacidade na história, ao mesmo tempo em que anuncia a possibilidade de transcendermos nossa temporalidade individual.
Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, discorre a respeito das imagens que emergem do “fundo poético do espaço da casa”, afirmando que “é exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas com o devaneio que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós”.Afirma ainda que “todo o espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa”, e a preciosidade está na proteção que a casa oferece ao sonhador, na paz de se poder descansar, permitindo que esse devaneios produzam “valores que marcam o homem em sua profundidade”, Um espaço feliz é um lugar que provoca, pacifica e gera uma sensação de acolhimento, instiga a troca e o conhecimento e desperta uma ligação afetiva em quem nele vive, pela memória que persiste nas pedras, solidificando imagens, identidades e signos (5).
Na visão de Bachelard, a lembrança tem função primordial no espaço, atribuindo-lhe a condição de âncora da memória: “o inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas”. Todos os espaços com os quais estabelecemos uma relação de intimidade adquirem “valores oníricos consoantes”. São justamente as lembranças localizadas na região da intimidade que nos dão o sentido de valorização dos aposentos, praças, ruas, edifícios e paisagens que constituem patrimônios da história da humanidade, de uma determinada sociedade ou das histórias íntimas e individuais. Os devaneios suscitados pelas lembranças convidam-nos à imaginação e provocam transformações nas profundezas do ser. A ausência de possibilidade de devanear gera, ao contrário, o estreitamento da imaginação e a acomodação em relação à realidade. Em outras palavras: a ausência do sonho, do devaneio, impede a construção de utopias. É neste sentido, e não como tentativa de um resgate de um tempo perdido ou de uma cultura já morta, que a preservação da arquitetura e dos ambientes urbanos adquire importância (5).
Em uma linha mais contemporânea, Aldo Rossi em “A Arquitetura da Cidade”, apresenta uma teoria geral da cidade, fundamentada na análise da cidade histórica.Em contraposição ao urbanismo “arrasa – quarteirão”, surge à noção de lugar ou genius loci – conceito teórico – filosófico que e refere a um campo perceptivo resultante, na definição de Rossi, da “relação singular e, ao mesmo tempo, universal, entre certa situação local e as construções existentes naquele local” (6). Já Kenneth Frampton desenvolve a teoria do lugar em contraposição a idéia de totalidade, norteadora das idéias de proposição da cidade modernista. Para Frampton, o espaço não deve ser tratado como algo abstrato, mas como o lugar de habitação dos homens. Formula então a proposta de um regionalismo crítico, onde a questão do lugar é pensada a partir de suas significações e referências históricas, geográficas e culturais (7).
O ser humano sempre teve uma "necessidade pelo passado", e os traços do passado da cidade - suas ruínas - são, simultaneamente, sinais de um passado imaginado que tem o poder de nos reconfortar, como sinônimo de uma proximidade; sinais de um passado artístico; marca de uma continuidade e de um finalismo. Os monumentos históricos funcionam então como representações ou ícones de um passado atemporal, uma criação artística do passado e simbólica do presente, dentro de um sentido de eternidade.A relação que o indivíduo mantém com o espaço que o cerca, é o que mais influencia na sua forma de uso, significação e valorização.E nossa memória, constituída de impressões, de experiências, é o que nós retemos e o que nos dá a exata dimensão do que percebemos e sentimos através do nosso lugar no mundo.
Eder Santos Carvalho
Encruzilhada do Sul, Outubro de 2009
Notas:
1
HALL, Edward. “A dimensão oculta”. Apud ELALI, Gleice Azambuja. Psicologia e arquitetura: em busca do locus interdisciplinar.
2
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 51.
3
Ver, a esse respeito, AGGIO, Sandra Mara, Cidade e Memória em Walter Benjamim in revista Caramelo , n◦ 8, São Paulo: FAU-USP, nov./95, pp. 153 – 162.
4
CARVALHO, Maria Alice Rezende de, Quatro Vezes Cidade, Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 96.
5
BACHELARD, Gaston, A Poética do Espaço, São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp.25 e 26.
6
ROSSI, Aldo, A Arquitetura da Cidade, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 185.
7
FRAMPTON, Kenneth, História Crítica de la Arquitetura Moderna, Barcelona: Ed. G. Gilli, 1981.
Bibliografia:
Ortegosa, Sandra Mara - Cidade e memória: do urbanismo “arrasa-quarteirão” à questão do lugar – Artigo – Portal Vitrúvius – Setembro 2009
Almeida, Eneida de e Bogéa, Marta – Esquecer para preservar – Artigo – Portal Vitrúvius – Dezembro 2007
Scocuglia, Jovanka Baracuhy C., Chaves, Carolina e Lins, Juliana – Percepção e memória da cidade: o Ponto de Cem Réis – Artigo – Portal Vitrúvius – Janeiro 2006
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