segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Com arquitetura medieval europeia, castelo em Pedras Altas abrirá portas para visitantes e historiadores


Construção pertenceu à família de Assis Brasil, político que nomeia avenidas em cidades gaúchas, e foi cenário da Revolução de 1923

Um pacato município gaúcho, isolado por estradas de chão batido, abriga um centenário castelo de estilo europeu que mudou a história do Rio Grande do Sul. Os seis andares de amplos aposentos foram lar de Joaquim Francisco de Assis Brasil, político gaúcho de influência nacional cujo sobrenome batizou avenidas. Após viver dias de abandono, o castelo inaugurado em 1913, foi comprado em março deste ano por uma família de advogados empenhada em reabrir as portas a turistas e historiadores ávidos por um acervo raríssimo.

Os 44 cômodos, 12 quartos e cinco banheiros concentram antigos móveis, livros, fotografias, diários e cartas retratam a vida de poderosos da Primeira República, época do início do século 20. A hipnotizante biblioteca particular, considerada uma das mais raras do Brasil, reúne mais de 15 mil livros, incluindo títulos de colecionadores, como um exemplar de 1782 da Enciclopédia, dos franceses Diderot e d'Alembert.

A joia rara está encravada em uma granja de 300 hectares na pequena Pedras Altas, cidade de menos de 2 mil habitantes da Região Sul. O castelo, inspirado em palácios medievais europeus, foi construído para abrigar com conforto a esposa de Assis Brasil, Lydia Pereira Felício de São Mamede, descendente da nobreza de Portugal. Estudado, viajado e poliglota, Assis Brasil foi um rico estancieiro e político que articulou a Revolução de 1923, movimento que culminou em 1 mil gaúchos mortos (leia mais abaixo). O conflito foi finalizado com um acordo de paz assinado na sala de estar do castelo.

Até março deste ano, a granja estava sob posse dos 20 descendentes de Assis Brasil, que discordavam sob o destino a ser dado ao castelo - revitalizar, sob custo milionário, ou vender o patrimônio. Do dissenso, surgiu o abandono: o mofo cresceu nas paredes, a pintura do teto caiu sobre móveis, cortinas ficaram puídas, fotografias desbotaram, objetos foram saqueados e as pesadas portas de ferro fecharam-se ao público nos últimos anos.

O cenário mudou quando um dos herdeiros comunicou ao advogado de Santa Maria Luiz Carlos Segat, 56 anos, que a granja estava à venda. Segat e os três filhos buscavam uma propriedade para plantar soja e viram na oferta uma oportunidade. O terreno foi adquirido no nome dos filhos de Luiz Carlos, os advogados Rafael, 36, Gabriela, 33, e Kamilla, 30.

O advogado não quis tornar público o valor da transação, mas as obras de revitalização interna foram estimadas em R$ 10 milhões. O valor será obtido com verbas públicas da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e com patrocínio de empresas por meio da Lei Rouanet, algo comum para construções históricas. Um convênio foi fechado com um supermercado de Santa Maria, e a família deseja abrir pousada e restaurante para sediar eventos e casamentos.

Antes da compra, Luiz Carlos Segat sequer sabia quem era Assis Brasil e a importância da granja. Ao pesquisar sobre o assunto, encantou-se com o valor simbólico do local e criou a Associação Cultural do Castelo de Pedras Altas, da qual é presidente. Tornou-se um aficionado e, hoje, reconta a história da granja com riqueza de detalhes enquanto leva a reportagem de GZH a um passeio na propriedade. Se a família possui um castelo milionário com arquitetura medieval, Luiz Carlos descreve uma infância pobre, filho de uma faxineira e de um pedreiro. Formou-se como técnico em agropecuária e diplomou-se em Direito apenas aos 38 anos.

— Olha como é a vida. Eu gostava muito de estudar e sonhava em comprar uma enciclopédia, daquelas que vendiam na porta de casa. Hoje, chego aqui e tenho a primeira enciclopédia escrita no mundo — diz Luiz Carlos, enquanto embarga a voz e segura as lágrimas nos olhos.

— Veja como é a lei do retorno. Nunca imaginei que teríamos isso na família — completa.

Neta de Assis Brasil, a pecuarista Lydia Costa Pereira de Assis Brasil, 68, viveu 20 anos no castelo, entre 1998 e 2018. Ao longo dos anos, recebeu turistas interessados em conhecer os aposentos da família, mas explica que a multiplicidade de herdeiros impedia um consenso quanto ao destino do castelo. Parte dos descendentes desejava a venda da propriedade e outro grupo pretendia buscar verbas para revitalizar a construção. O interesse dos Segat em atender a ambos os desejos resolveu o impasse familiar.

— A casa é um mergulho no passado. Isso encanta as pessoas. O castelo é uma preciosidade. Todo mundo saiu feliz porque foi vendido para alguém que quer restaurar. Os Segat agora são responsáveis por preservar o patrimônio — pontua.

História transborda

Apesar do aspecto de abandono, o castelo transborda itens históricos. Há um carro presenteado a Assis Brasil por Henry Ford, poltronas e mesa onde foi assinado o acordo de paz que terminou com a Revolução de 1923, um biombo de madeira com assinaturas de figuras como Machado de Assis e Barão de Rio Branco, além de objetos de época. A restauração da estrutura interna deve levar um ano, mas o acervo pode exigir mais tempo. A ideia é abrir para visitação externa em setembro e para entrada interna até dezembro de 2023.

A secretária estadual da Cultura do Rio Grande do Sul, Beatriz Araújo, admira o castelo há anos e afirma que a revitalização é acompanhada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae) para assegurar a preservação do acervo. Araújo diz que o governo está empolgado com a reabertura do local e que o Piratini dispõe de R$ 70 milhões por ano para financiar projetos de cultura, o que inclui restauração de patrimônio. O castelo, portanto, pode receber aporte de verbas se a família Segat inscrever um projeto em edital.

— A Secretaria acompanha o processo e dá suporte técnico à família, além de oferecer o sistema de fomento à cultura. O castelo é um ativo muito importante para a região, mas chegou a um estado de deterioração muito grave. Quando reabrir, trará um resultado para a região. Pedras Altas é a cidade do castelo, mas é evidente que outros municípios poderão agregar valor. Só que o turismo não se faz só com um ativo, é preciso trabalhar o entorno — diz Araújo.

Em Pedras Altas, a expectativa para um aumento de turistas após a reabertura do castelo é alta. Durante a visita de GZH à cidade nesta semana, as ruas estavam vazias, sem pessoas ou carros. O único barulho ouvido era o das folhas das árvores sob o vento gelado. Natural de Porto Alegre, a artesã Silmara Abreu, 46 anos, dona de uma loja de artesanato próxima ao castelo, diz que o município é tranquilo e que a população se beneficiaria de uma nova atração.

— Se o castelo abrir para turismo, seria muito bom para nós, moradores e comerciantes. A gente vive em uma cidade pequena. Eu trabalho com artesanato. A pessoa que for no castelo depois pode passar aqui na loja — diz a artesã.

O prefeito de Pedras Altas, Volnei da Silva Oliveira (PT), projeta um futuro repleto de visitantes, o que traria maior arrecadação de impostos. Questionado, ele não informou nenhuma medida da prefeitura para auxiliar na reforma do castelo ou melhorar a infraestrutura turística do município. A prefeitura também não inscreveu nenhum projeto no programa Avançar, do Piratini, que destinará R$ 131 milhões para o turismo.

— Vai ser um momento importante para Pedras Altas. Estamos mal de pousada e de hotel, e a ideia do (Luiz Carlos) Segat é abrir uma pousada. Vai ser uma grande ajuda para o município, vai chamar muitas pessoas na cidade, é importante até para arrecadar recurso. Hoje, nossa dificuldade é não termos acesso asfáltico - diz o prefeito.

UFPel atuará no restauro

A importância do acervo é tão grande que a família Segat firmará um convênio com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) para pesquisadores restaurarem parte dos itens do castelo. A professora de Museologia Noris Leal comandará uma equipe de 15 servidores e alunos dos cursos de Museologia e de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis na empreitada. Desde março, o grupo cataloga o inventário - em breve, iniciará o restauro de obras de arte, móveis, fotografias e documentos.

— O acervo é um dos mais ricos do Brasil, não só pela biblioteca, mas por tudo o que existe no castelo. É um acervo inexplorado que conta muito da história política do Brasil República. Quando estiver aberto à pesquisa, promoverá fontes até então não utilizadas. É importante não só para a história do Rio Grande do Sul, mas também do Brasil. O Assis Brasil foi um dos líderes da revolução de 1923, então há correspondências falando sobre a situação política, relatórios e diários — explica a museóloga.

A disponibilização do acervo para pesquisadores não deve desvelar novidades impactantes que alterem livros didáticos, mas poderá trazer novos detalhes acerca da Revolução de 1923 e da vida de Assis Brasil, diz Fábio Kuhn, professor de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do livro Breve História do Rio Grande do Sul (Editora Leitura Xxi).

— Alguma grande novidade talvez não traga, mas a correspondência de Assis Brasil com diversas autoridades permite revelar detalhes desconhecidos. A historiografia se vale muito da correspondência privada para entender as atitudes dos homens públicos. Se esse castelo estivesse na Europa ou nos Estados Unidos, já teria uma fundação que o teria reformado, seria um museu com cobrança de ingressos e o arquivo estaria disponível a pesquisadores — diz Kuhn.

Para os herdeiros de Assis Brasil, se o castelo mudou de dono, ficarão para sempre as memórias da avó Lydia e o legado do avô que mudou a história do Rio Grande do Sul:

— Vovó Lydia era maravilhosa, culta e bondosa. Saiu da Europa, veio a Pedras Altas e fez projetos sociais, ajudou a criar o hospital da cidade. O Assis Brasil não perdia um segundo da vida, para ele tudo tinha um fundamento e uma razão de ser. Ele queria demonstrar que, com tecnologia e investimento, uma pequena propriedade poderia produzir o que se produzia em uma légua. Deixou o legado de uma vida bem vivida, de que a gente deve ter um ideal e seguir esse ideal — conta a neta Lydia.

Quem foi Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938)

Advogado, político e pecuarista, Assis Brasil nasceu em São Gabriel e articulou a Revolução de 1923 no Rio Grande do Sul. Foi deputado na legislatura que criou a nova Constituição brasileira e ajudou a redigir a Constituição gaúcha. Diplomata em Buenos Aires, Lisboa e Washington D.C, Assis Brasil ajudou o Barão de Rio Branco a negociar a compra do Acre pelo governo brasileiro. É considerado o pai do Direito Eleitoral e da Expointer. Casou duas vezes e teve 12 filhos. Morreu no castelo de Pedras Altas.

O que foi a Revolução de 1923

Retratado no livro O Arquipélago, de Erico Verissimo, o movimento armado buscava depor o governador do Rio Grande do Sul Borges de Medeiros, que tinha 25 anos de cargo e reduzira incentivos ao setor agropecuário. O conflito durou menos de um ano e opôs partidários de Borges (chimangos) a apoiadores de Assis Brasil (maragatos), que tentara se eleger como governador, mas perdera em eleições fraudadas. Mais de 1 mil pessoas morreram em batalhas em cidades como Passo Fundo e Palmeira das Missões. O fim se deu com o Tratado de Paz de Pedras Altas, assinado em uma das salas-de-estar do castelo de Assis Brasil. Borges se comprometeu a sair do poder após o fim do mandato.

— A revolução de 1923 foi uma das grandes revoltas do período da Primeira República. Borges tinha uma política econômica de desenvolvimento global, de não privilegiar nenhum setor, então não protegia mais o setor pecuarista, gravemente afetado pela crise econômica do pós-primeira guerra. Borges precisava de dinheiro para colocar em prática o projeto de dragagem do porto de Rio Grande e cobrou dívidas do setor pecuarista. Já Assis Brasil era ligado a uma elite da pecuária que perdeu benefícios. Há um discurso que enaltece virtudes meio heroicas do Assis Brasil, mas ele era um homem do seu tempo, inserido em uma classe social, com interesses econômicos e políticos afetados — analisa Fábio Kuhn, professor de História na UFRGS.

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