Herói indígena que tem canonização solicitada à Igreja Católica já teve homenagem vetada no Rio Grande do Sul.
A iniciativa de valorizar os espaços onde Sepé Tiaraju morreu e seus 1,5 mil companheiros foram massacrados, em 1756, surgiu 200 anos depois. Em 1955, o major do exército João Carlos Nobre da Veiga propôs ao governador Ildo Meneghetti levantar um monumento a Tiaraju na Sanga da Bica, perto do centro da cidade de São Gabriel, para lembrar o bicentenário da morte. “Sr. governador, creio que nada mais justo para o povo gaúcho do que reverenciar, na pessoa do índio Sepé, seu passado de lutas, de glórias e de sacrifícios”, peticionou.
Meneghetti consultou o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS). Em outubro, em sessão ordinária, os sócios da entidade aprovaram um parecer que rejeitava a homenagem. O texto, assinado por Afonso Guerreira Lima, Othelo Rosa e Moysés Vellinho, rechaçava a “brasilidade” de Tiaraju e recusava-lhe o título de herói nacional, uma vez que lutara contra a consolidação do Rio Grande do Sul, “opondo-se quanto pôde ao destino histórico de sua inclusão na civilização lusitana e no Brasil”. Se Sepé tivesse vencido, acrescentava o parecer, as terras por que lutou “não tocariam” a nós.
Essa concepção de que Sepé e os indígenas podiam ser excluídos da História do Brasil incendiou a intelectualidade gaúcha, dando origem a uma profusão de artigos em jornais e revistas. Um dos primeiros a defender o parecer do IHGRS foi o jornalista Carlos Reverbel, mas muitos se insurgiram, o que culminou na publicação de um manifesto endereçado ao governador e assinado por 22 membros do instituto, entre eles nomes de peso como Manoelito de Ornellas, Mansueto Bernardi, Dante de Laytano, Borges de Medeiros e Balduíno Rambo: “Sepé é, cronologicamente, o primeiro herói dessa gloriosa galeria de heróis de que tanto se orgulha o Rio Grande do Sul (...), é muito mais gaúcho e, por conseguinte, muito mais brasileiro (...) do que os mais velhos rio-grandenses, pois estes descendem de lusitanos aqui aportados, no máximo, há 230 anos”.
Quando esse documento foi publicado, em setembro de 1956, o bicentenário de morte já havia transcorrido, sem celebrações oficiais. São Gabriel ainda esperaria cinco anos para ver uma homenagem às vítimas da Guerra Guaranítica, particularmente Sepé e seus 1,5 mil seguidores mortos três dias depois, nos campos de Caiboaté, também São Gabriel, e por iniciativa particular: o proprietário rural Rolino Leonardo Vieira fez erigir um monumento de granito em Caiboaté, em 1961, no local onde antes fora instalada a cruz de Miguel Mayrá. Passados mais seis anos, outra cruz, de concreto, foi levantada nas imediações. Em 2001, foi a vez da Sanga da Bica receber uma placa assinalando que ali morrera Sepé.
No dia 1º de janeiro de 2013, o frei Antonio Cechin (1927-2016), um dos idealizadores da proposta de canonizar Sepé, apanhou um ônibus em Porto Alegre com destino a São Gabriel. Carregava nos braços uma estátua de Tiaraju. Naquele dia, tomava posse um novo prefeito, Roque Montagner (PT), em substituição a Rossano Dotto Gonçalves (PDT). A viagem do religioso era reveladora da divisão ideológica que a figura de Tiaraju ainda despertava, passados mais de 250 anos. Para ele, a eleição afastara do poder os sucessores das sesmarias distribuídas por Gomes Freire depois do massacre dos índios em Caiboaté. “Sai defenestrado pelo voto popular o último dos prefeitos de estirpe latifundiária, totalmente identificado com a dinastia dos donos de sesmarias locais de antanho, e entra um novo prefeito”, escreveu Cechin em um artigo da época. “Entregamos, em pleno comício de posse, ao novo prefeito Roque Montagner, a estátua de São Sepé Tiaraju como sinal do grande triunfo obtido para toda a população da cidade, de modo todo particular para os excluídos: índios, negros, sem terra dos assentamentos do MST, pequenos agricultores, mulheres, catadores etc. etc.”. Foi assim que a estátua do Sepé nanico, em meio a um conflito político, acabou na Sanga da Bica.
Gonçalves, que voltou ao comando do município e hoje está no quarto mandato como prefeito (desta vez pelo PL), critica o uso político da figura de Sepé e afirma não defender latifundiários, mas sim sua comunidade.
– Defendo o direito à propriedade, de quem quer que seja e de qualquer tamanho. O Sepé dizia: “Esta terra tem dono”. Quem é proprietário de terra é dono da terra, se tem a terra escriturada. Então cada um pode dizer: “Esta terra tem dono”. Com o tempo, passaram a distorcer e ficou valendo a distorção. Ninguém pode se apropriar, nem um lado, nem o outro, da figura de Sepé Tiaraju.
Sobre a conservação dos espaços ligados à memória do herói (a Sanga da Bica, o local de sepultamento e Caiboaté), o prefeito diz que é responsabilidade da prefeitura e que providências serão tomadas quando houver qualquer problema. Ele afirma que há um projeto de pavimentação de passeio no local da morte e um plano, que depende de verbas federais, para iluminar e melhorar a visitação em Caiboaté.
O índio santificado
Desde que Tiaraju morreu, pipocaram lendas associadas a ele. Uma das mais difundidas afirma que o cacique tinha um sinal esbranquiçado na testa, em forma de cruz – o chamado Lunar de Sepé. Esse sinal teria subido aos céus e formado a constelação do Cruzeiro do Sul. Em torno dessas histórias começou a se desenvolver a devoção popular e surgiu a figura do São Sepé (que é até nome de município). Na Sanga da Bica, por exemplo, é possível encontrar uma placa em agradecimento por uma graça alcançada.
No final de 2015, um grupo de que fazia parte Antonio Cechin buscou reconhecimento oficial para a crença do povo. Entregou ao bispo de Santo Ângelo, Liro Vendelino Meurer, o pedido para dar andamento ao processo de canonização. A diocese missioneira foi a escolhida por abranger o território das antigas reduções jesuíticas e o provável local de nascimento de Sepé. O bispo, no entanto, não acolheu o pedido e devolveu a documentação aos proponentes.
– Nós achávamos que deveria assumir quem tivesse mais entusiasmo por essa causa. Eles entregaram isso, nós analisamos e, resumindo tudo, achamos por bem passar o pedido para essa equipe que tinha entregue para nós o material, para eles encaminharem onde quisessem, como quisessem – afirma Meurer.
De acordo com o bispo, a devoção existente na região não é voltada a Sepé, mas aos chamados Santos Mártires das Missões, três padres jesuítas canonizados em 1988.
– Sepé usa-se mais para nome de rua, de imobiliária, de empresa de ônibus, mas para canonização é um pouco mais difícil de perceber. Ele não faz parte do que acontece em termos de Igreja durante o ano – avalia.
O grupo teve mais sorte com Gílio Felício, que até 2018 era bispo de Bagé, diocese responsável por São Gabriel, e que foi pessoalmente ao Vaticano apresentar a causa. O papa Francisco, um jesuíta familiarizado com a história das Missões, deu o sinal verde. Com isso, a abertura do processo foi aceita e Sepé Tiaraju ascendeu ao status de Servo de Deus, primeiro passo para a santidade. O candidato a santo já ganhou até uma oração oficial, impressa em santinhos.
O padre Alex Kloppenburg, da comissão de canonização, entende que o atual Papa é um aliado e, por isso, gostaria de agilizar o processo para concluí-lo no atual pontificado. Segundo ele, a estratégia é apresentar o cacique guarani como um mártir da fé, o que permitiria que fosse beatificado sem haver reconhecimento de um milagre. Nesta sexta-feira, estavam previstos eventos religiosos na Sanga da Bica e em Caiboaté para divulgar a causa entre os grabrielenses.
– Faz tempo que Sepé vem sendo cultuado e venerado, não só internamente, na Igreja, mas muito mais na sociedade. Para o povo, ele já é santo. Mas o culto é individual, até porque nunca se falou sobre isso no passado na Igreja. Era proibido. Onde é que se viu um índio ser santo? Tem todo esse preconceito, que ainda não mudou totalmente. Ainda temos certas dificuldades internamente na Igreja e externamente também. Agora estamos nos mobilizando, também como reconhecimento de toda a causa indígena, celebrando a memória de quase 50 milhões de índios que foram mortos na América Latina. Queremos trazer no bojo o martírio e o genocídio de tantos índios, que infelizmente continua acontecendo – disse Kloppenburg.
Nesse esforço, os locais associados a Sepé em São Gabriel são considerados de grande importância, e os postuladores da causa têm planos para eles, como a criação de um santuário. No entanto, a iniciativa católica pode encontrar barreiras entre os próprios indígenas. Principal liderança na região de São Gabriel, o cacique Natalino se opõe à canonização:
– Os guaranis não são bem com isso. Eu também não... Porque certamente Sepé tombou e o espírito dele ficou vagando. A pessoa, depois que morre, o espírito não tem poder nenhum. Eles querem considerar Sepé como um santo e isso aí não existe. A gente é um espírito que tem poder enquanto é vivo. Se ele está bem com Tupã, ele morreu e vai viver eternamente por Tupã. Agora, no dia 7/2 (sexta-feira, data de aniversário da morte de Sepé), a diocese vem aí. O padre Alex me ligou, é para eu participar, mas eu não... Eu não tenho respeito dessas situações de canonizações. Eles certamente vão me pegar no dia 7, mas eu estou constrangido. Hoje em dia, não há uma comunidade indígena expressiva em São Gabriel, mas grupos de outras regiões costumam passar temporadas na cidade. Das atribuições do cacique Natalino consta auxiliar esses visitantes.
No final de janeiro, ele recebeu um grupo de 23 caingangues. Eles vieram, explicou o cacique, para vender artesanato. Naqueles dias, era possível encontrá-los na zona central da cidade, espalhados em pequenos grupos. Ofereciam enfeites coloridos e exibiam cartazes com os dizeres: “Me ajude com agasalho ou moeda para comprar alimento. Deus lhe dê em dobro”.
Desse grupo faziam parte alguns indiozinhos, meninos e meninas de pouca idade. Postados à porta de supermercados ou de outros estabelecimentos comerciais, com o mesmo cartaz em mãos, as crianças pediam esmola.
Quase três séculos depois, continua o massacre.
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