quinta-feira, 3 de abril de 2014

Movimento luta pela preservação de patrimônio histórico da zona leste de São Paulo

São Paulo - O micro-ônibus para na rua Urutu, bairro Vila Jacuí, zona leste de São Paulo. Ao descer, o guia avisa os participantes da excursão: “Prestem muita atenção no que estão vendo, porque vocês podem ser os últimos a observar isso”. Depois das reações dos passageiros, ele enfatiza: “Aliás, tudo o que viram hoje pode não existir amanhã”. O autor do alerta, dado no último dia 15 de março, era o pesquisador Danilo Morcelli, que desenvolveu uma tese de mestrado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) sobre o patrimônio histórico da zona leste paulistana.
Ao longo do dia, foram vistos testemunhos do passado da região, quando a ZL era destino de veraneio de famílias abastadas da capital. Igrejas, caminhos entre palmeiras, chaminés industriais da história mais recente, tudo monumental. Apesar da precariedade, imagens que passavam a mensagem de patrimônio.
Depois do aviso de Danilo, a expectativa era de que surgisse algo grandioso, mesmo que degradado. Mas não. Espremido entre o trânsito da movimentada Dr. Assis Ribeiro, na Vila Jacuí, e a via férrea, havia só um terreno irregular, gramado, com restos de uma construção. As ruínas eram de 1750, anteriores à maioria das construções antigas do centro da capital.
Ali, no passado, erguia-se a sede do Sítio Mirim, uma casa bandeirista, onde se plantou cana, mandioca e se criou gado, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1973, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat), em 1982, e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), em 1991.
A sede integrava outro sítio, o Piraquara, tombado e destombado em função do desaparecimento da edificação que o caracterizava. O local hoje é vigiado por seguranças privados que tentam impedir ocupações de sem teto.
No passado, a  localização do Sítio Mirim era estratégica. Do alto de uma colina, era possível ver, ao longe, a Capela de São Miguel, que fica no bairro de São Miguel Paulista, cuja construção é datada de 1622 – a mais antiga de todo o estado de São Paulo, que continua de pé e está restaurada.
Dali também era observável a movimentação de embarcações no rio Tietê, às margens da propriedade. Hoje, a vista é obstruída pela paisagem urbana de prédios, pontes e viadutos que ligam o bairro à rodovia Airton Senna. O cenário atual, além de esconder a capela, tira o rio do alcance da visão.
Desde 2007, há um projeto assinado pelo escritório Apiacás Arquitetos e Marcos Cartum, autor da Praça das Artes, no centro da capital, para a criação de um centro de memória no Sítio Mirim. A ideia é proteger as ruínas e criar mecanismos arquitetônicos, como a reconstrução da altura original e exposição de veios de água, objetivando que voltasse a ter significado para a comunidade, que atualmente não vê sentido em preservar um “terreno baldio”. “A ideia é proteger contra o esquecimento, a falta de sentido, de significado”, afirma Cartum.
Liderados por Antonio Luiz Marchioni, o padre Ticão, um dos principais articuladores do movimento pró-universidade federal da zona leste e outras questões relativas à região, os moradores encaminharam uma carta pedindo recursos para a execução do projeto de recuperação do Sítio Mirim ao atual secretário municipal de Cultura, Juca Ferreira. A correspondência foi enviada em uma grande folha de cartolina. “A gente fez bem grande para ele não poder guardar em nenhuma gaveta”, brinca o padre.

Memómia e Preservação

O passeio pela ZL é só uma parte de uma série de esforços empenhados por Danilo Morcelli, morador da zona leste. O pesquisador luta para dar visibilidade ao patrimônio local. Em conjunto com outros habitantes da região que tomaram a memória como causa, ele acredita que há edificações mais antigas e heterogêneas do que as do centro da cidade, que é foco privilegiado de atenção e investimento do poder público. “Sem conhecer o passado, a gente não reflete o presente e não planeja o futuro”, defende.
A zona leste teve ocupação concomitante com o centro da capital. A paisagem, tomada pelas planícies alagáveis do rio Tietê, fez com que a cidade caminhasse com mais intensidade para lá. Ainda assim, está repleta de construções antigas ameaçadas pelo esquecimento, pela ausência de políticas públicas e a especulação imobiliária que, nos últimos anos, recebeu mais um estímulo com o advento da Copa do Mundo.
No bairro da Penha, por exemplo, ao lado da primeira padaria da zona leste, na rua Gabriela Mistral, uma casa com traços da década de 30 do século passado foi demolida poucas semanas antes do passeio, segundo Danilo. Os escombros ainda estavam no terreno e eram avaliados por pessoas que os reaproveitam e vendem a lojas de materiais de demolição, tipo de estabelecimento comum nas imediações.
A padaria atualmente está fechada e não é reconhecida por nenhum órgão que cuida de patrimônio. Os registros sobre a história foram levantados por memorialistas do bairro, que estimam que tenha sido construída antes de 1930, no que era um antigo caminho de barqueiros, numa espécie de porto no rio Tietê, hoje uma avenida movimentada.
“As políticas de preservação não chegam na zona leste”, aponta a historiadora Patrícia Freire de Almeida, do Movimento Cultural da Penha (MCP) que, desde 2001, luta para preservar, entre outros projetos, a memória da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, cujos registros remontam a 1802, e que pode ser ainda mais antiga. A construção simples, sem adornos, foi erguida por escravos para cultos, em uma época quando eles não eram bem-vindos na igreja de brancos, a poucos metros dali.
Segundo os pesquisadores, a Igreja dos Homens Pretos é uma das únicas de São Paulo que conseguiu resistir às diversas tentativas de demolição ou remoção para um local menos valorizado. “A gente considera isso aqui uma referência de resistência dos negros da região”, explica Patrícia.
Desde 2001, todo ano, no mês de junho, o grupo Recado dos Nossos Ancestrais, do qual o MCP faz parte, realiza uma festa como a que os escravos faziam, mas o mês não é dos santos padroeiros Expedito ou Nossa Senhora do Rosário. É o mês do reconhecimento do valor histórico do local pelo Condephaat, o que ocorreu em 1982. “A ideia é buscar nessas memórias a identidade da região”, conta Patrícia.

Continuação do texto e mais imagens no link abaixo:


















Patrimônio - Abandonada, taipa erguida no século 17 está tomada de árvores
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Patrimônio - Construída em 1622, capela de São Miguel é a mais velha do Estado  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Patrimônio - Erguida em 1682, igreja da Penha era frequentada por elite da cidade

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