Versão dos vencedores não dá conta da organização política de uma sociedade que se manteve por mais de meio século
Laura Perazza Mendes Nascimento
Corria pelos engenhos e senzalas da capitania de Pernambuco a notícia
de que, para o lado das serras, na região dos palmares, havia um
refúgio. Um lugar onde era possível viver fora do poder dos senhores de
engenho e manter vivas tradições africanas recriadas na América. Lá, uma
nova sociedade era construída: guerreiros, agricultores, comandantes de
guerra, líderes religiosos e uma linhagem real que determinava os rumos
políticos e militares.
Aquelas povoações foram chamadas de mocambos, acampamentos que poderiam
ser desmontados e montados em outras regiões, como estratégia de fuga
ou de busca por melhores terrenos. Chegar a essa zona de vegetação de
palmares não era tarefa fácil. Após fugir dos engenhos ou das vilas, era
necessário trilhar caminhos íngremes e fechados pela mata. Qualquer
descuido poderia resultar em recaptura ou morte, pois havia pessoas
dedicadas especialmente à perseguição de escravos fugitivos, como os
capitães do mato. Mesmo assim, muitos conseguiram chegar ao local,
incluindo índios e pessoas livres. Foi mais fácil fugir para os mocambos
no início do século XVII, quando a produção de açúcar foi desorganizada
pela invasão dos holandeses (1630) e, mais tarde, pelas batalhas de
expulsão desses estrangeiros (1645-1654).
Como era feito em Angola, os habitantes extraíam dos palmares a
vegetação que deu o nome para os mocambos, fibras e palmito, além de
produzir vinho e óleo. Não viviam isolados da sociedade colonial, mas
buscavam reagir ao escravismo governando a si próprios.
Mas quem contou a história dessa sociedade? Infelizmente, não há nenhum
registro escrito por habitantes dos Palmares. O que chegou até nós
foram documentos produzidos por representantes da Coroa portuguesa que
governaram a capitania de Pernambuco, e relatos de pessoas que lutaram
contra os negros dos mocambos durante o século XVII. Por causa disso e
de uma interpretação preconceituosa dos primeiros historiadores de
Palmares, a sua história foi contada do ponto de vista da destruição.
Era a versão dos vencedores.
O principal meio tentado pelos governadores de Pernambuco e pela Coroa
portuguesa para pôr um fim em Palmares foi enviar expedições militares.
Elas deveriam encontrar o caminho dos mocambos e fazer o máximo de
prisioneiros possível. Os prisioneiros seriam devolvidos a seus antigos
senhores ou vendidos para fora da capitania, para que não retornassem
aos mocambos. Poderiam render um bom lucro, mas durante os confrontos
muitos morriam ou ficavam feridos. Como meio de se defender dos ataques,
os habitantes de Palmares faziam emboscadas e levantavam acampamento,
mudando os mocambos de local.
Um dos primeiros estudiosos do assunto, o escritor Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906), dividiu a história de Palmares em três fases. A
primeira corresponde ao período da invasão holandesa, no qual o número
de habitantes dos mocambos cresceu rapidamente. Seu marco seria o ano de
1644, data do confronto entre os negros amocambados e a expedição
comandada por um holandês chamado Rodolfo Baro. O próximo marco
escolhido por Nina Rodrigues foi uma expedição militar comandada pelo
capitão Fernão Carrilho, em 1677. Vindo de Sergipe especialmente para
fazer uma guerra contra Palmares, o militar promoveu um grande ataque.
Segundo relatos posteriores, 200 habitantes de Palmares foram feitos
prisioneiros, incluindo a rainha e filhos do rei, chamado Gana Zumba.
Muitos morreram ou ficaram feridos, mas sobre estes não há números.
Importava mais aos vencedores contar aqueles que poderiam ser vendidos. A
fase final de Palmares foi a da morte do líder Zumbi, em 1695, seguida
pela destruição dos mocambos remanescentes. Mas o salto na história
promovido por Nina Rodrigues não dá conta de explicar a mudança da
liderança do rei Gana Zumba para Zumbi. Muitas coisas acontecerem nesse
meio-tempo: acordos de paz, mudanças nas localizações dos mocambos,
diferentes posicionamentos políticos.
Continuação do texto no link: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-que-houve-em-palmares
Panorâmica do Parque Memorial do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, que desde 2007 reconstitui o cenário do antigo Quilombo.
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