A unidade de Manguinhos: decoração moderna, ambiente organizado e acolhedor.
Designado para o comando de uma biblioteca pública em plena favela de
Manguinhos, há dois anos, o geógrafo Alexandre Pimentel sabia que teria
uma aventura e tanto pela frente. O programa de Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs), empreendido pela Secretaria de Segurança Pública,
ainda não havia chegado por lá e o complexo de casebres era dominado por
traficantes uma ameaça real aos funcionários e ao amplo prédio de
2 300 metros quadrados, com 27 000 livros e 62 computadores para
navegação na internet. Mesmo assim, Pimentel nunca temeu roubos nem
invasões. Sua estratégia foi manter as portas abertas e receber bem quem
buscava as atividades culturais e o acervo oferecidos pela instituição,
parte de um conjunto que hoje agrega um colégio estadual, um centro
poliesportivo, uma UPA, uma clínica da família e, mais recentemente, a
UPP local. Um sinal claro de que essa “ocupação de território” foi
bem-sucedida é a respeitosa reverência com que os moradores do lugar
tratam os funcionários e as instalações. Com equipamentos e mobiliário
intactos, trata-se do mais perfeito exemplo de organização em meio ao
caos. “Eu sempre acreditei no poder civilizador dos livros, e esta
biblioteca é a prova disso”, diz Pimentel.
Valdeci Alves dos Santos e Milena Bernardo. Desde a inauguração da
unidade da Rocinha, em junho de 2012, Milena, de 6 anos, vai diariamente
à biblioteca acompanhada do avô, Valdeci dos Santos. Chega depois do
almoço e só sai no fim da tarde. Ela já usa o computador com
desenvoltura e adora as histórias do Sítio do Picapau Amarelo. ‘Fazia
muito tempo que a gente merecia um lugar assim’, afirma Valdeci
Próximo à linha férrea, o edifício de Manguinhos surgiu como a primeira
unidade de um ambicioso projeto que implantará outras doze parecidas no
estado. Rocinha e Niterói já ganharam seus templos do saber. Em outubro
será a vez do Complexo do Alemão. Estão previstas ainda bibliotecas em
áreas como Mangueira e Cidade de Deus. Não existe, evidentemente,
coincidência na escolha dessas favelas. A ideia do programa é justamente
proporcionar acesso ao conhecimento em áreas que ficaram conhecidas
pela violência e pela pobreza. Até aqui, os números são alvissareiros.
Em três anos, 344 000 pessoas se registraram e 15 000 frequentam esses
espaços regularmente. Ao todo, já foram emprestados 78 000 livros. As
preferências são quase as mesmas do pessoal mais jovem do asfalto:
histórias de vampiros da série Crepúsculo, as aventuras de Harry Potter e
os best-sellers de Thalita Rebouças (veja o quadro na pág. ao lado). Os
mais céticos se surpreenderam com o índice de volumes não devolvidos,
próximo de zero. Recentemente um leitor da unidade da Rocinha,
inconformado com o fato de ter perdido um exemplar que havia tomado
emprestado, comprou um novo para ser entregue no lugar. “No início
pensamos que a devolução poderia ser um problema, mas esse receio se
mostrou totalmente infundado”, diz Adriana Rattes, secretária estadual
de Cultura.
Elizabeth Gomes de Moraes. Ex-faxineira, Elizabeth, 47 anos, gostava
tanto de livros que conseguiu um emprego na biblioteca de Manguinhos. Em
três anos fez o ensino médio e hoje cursa a faculdade de letras.
Publicou um livro de poemas, mas almeja outros voos. ‘Vou escrever um
romance’, planeja.
Desde o tempo em que funcionavam dentro dos mosteiros medievais, as
bibliotecas costumam ser vistas como ambientes austeros, onde o silêncio
imposto aos visitantes e o rigor dos funcionários inibem quem não está
habituado. As unidades da Rocinha, de Manguinhos e de Niterói subvertem
essa ideia. Nelas, o espaço faz lembrar as acolhedoras livrarias dos
shopping centers, com projeto arquitetônico arrojado, decoração em cores
vibrantes e mobiliário moderno que induzem à descontração e à
informalidade. Tal configuração poderia facilmente desvirtuar a proposta
educacional, mas não foi o que aconteceu. Em Manguinhos, o auxiliar
administrativo Leonardo Nogueira Ribeiro, 20 anos, viu na biblioteca um
convite à diversão e à bagunça. Rapidamente percebeu que não era bem
assim. Foi chamado para uma conversa com a direção e mudou de
comportamento. Hoje, aborda outros jovens que, como ele, não
compreendiam a real função da biblioteca e explica o que acontece ali.
Leonardo vai lá todos os dias, após terminar seu expediente em uma loja
de informática no Centro. Leitor de Shakespeare, Clarice Lispector e
Luis Fernando Verissimo, ele também começou a usar a sala de música para
estudar violão e compor. Seu próximo plano é fazer faculdade de design.
“Eu amadureci, fiquei mais calmo e focado”, afirma.
Leonardo Nogueira Ribeiro. Depois que conheceu Shakespeare, Clarice
Lispector e Luis Fernando Verissimo entre as estantes de Manguinhos, o
auxiliar administrativo de 20 anos começou um curso de violão e quer
fazer faculdade de design. ‘A leitura me deixou mais focado em meus
objetivos’, afirma.
Estudos acadêmicos internacionais têm corroborado do ponto de vista
científico histórias como a de Leonardo. Uma pesquisa realizada há dois
anos por um grupo de educadores americanos com 70 000 jovens de 15 anos
em 27 países (o Brasil não foi incluído na amostra) comprova que
adolescentes de famílias de baixa renda com acesso a livros passam três
anos a mais na escola do que os que não leem. Assim, apresentam melhor
desempenho em provas e têm mais chances de obter um bom emprego. “Há
claras evidências de que a proximidade com os livros pode mitigar os
efeitos da pobreza no desempenho escolar e no processo de aquisição do
conhecimento”, conclui o linguista Stephen Krashen, professor emérito da
University of Southern California e um dos maiores especialistas no
assunto. O mesmo efeito pode ser constatado em adultos. Moradora de
Bonsucesso, a ex-faxineira Elizabeth Gomes de Moraes, 47 anos, sempre
amou os livros. Mãe de quatro filhos e avó de cinco netos, conseguiu uma
vaga na organização do acervo da biblioteca de Manguinhos. Fã tanto de
Sidney Sheldon como de Machado de Assis, em três anos ela concluiu o
ensino médio e foi aprovada no vestibular. Atualmente cursa o 2º período
da faculdade de letras, pagando a mensalidade do próprio bolso. “Agora
quero acabar de escrever um romance”, planeja.
A ideia que norteia todo o projeto de bibliotecas do Rio é manter
espaços democráticos e acessíveis, sem catracas à porta. Exige-se
cadastro apenas para o empréstimo de livros. Na Rocinha, por exemplo,
crianças a partir dos 5 anos de idade podem entrar acompanhadas de
adultos ou pré-adolescentes de 10 anos. Depois dos 13, qualquer um pode
ir sozinho. “Nosso desafio agora é atrair os mais velhos. Ainda existe
muita resistência por parte deles, que só vêm por exigência dos filhos
que precisam de um responsável para entrar”, conta Daniele Ramalho,
diretora da unidade. A maioria enfrenta a barreira da timidez e do
constrangimento, mas quem a rompe não se arrepende. Compositor de
sambas, ex-gari e atualmente fiscal da Comlurb, Haroldo César, 50 anos,
passava por Manguinhos para produzir um levantamento sobre a coleta de
lixo dos novos conjuntos residenciais construídos na área quando deparou
com a fachada de cores vivas e os janelões de vidro que dão para o
salão principal. Entrou e, de leitor, virou ator do grupo de teatro da
biblioteca. Logo começou a ajudar a escrever a primeira peça da
companhia e agora colabora com a revista interna Setor X, que traz
reportagens sobre a vida na região. Haroldo já lançou dois livros, um
deles de crônicas sobre a vida de gari, e está escrevendo o terceiro.
“Não me imagino mais longe daqui”, diz ele.
Assim como acontece com o teleférico do Complexo do Alemão, hoje um
ícone de cidadania e da retomada de regiões conflagradas, o projeto das
bibliotecas em áreas pobres, violentas ou degradadas foi inspirado em
uma iniciativa semelhante implantada na cidade de Medellín, na Colômbia,
a antiga capital do narcotráfico do país. Lá, desde 2006, o governo tem
apostado na instalação de núcleos culturais e de apoio à inclusão
social como forma de afastar do crime os jovens que moram nas suas
imensas favelas. De lá para cá, investiu-se em reformas das escolas
públicas e na construção das bibliotecas-parques, que, como o nome
sugere, não são apenas locais de leitura, mas modernos complexos
arquitetônicos que juntam educação, recreação e cultura. Tendência em
vários países, como França, Estados Unidos e Chile, o modelo integra, em
um amplo projeto urbanístico, novas mídias, espaços multiuso e áreas
onde as pessoas se socializam. Hoje, o sistema de bibliotecas públicas
de Medellín conta com 27 unidades, sendo nove no estilo parque, além de
centros de pesquisa e documentação que atendem cerca de setenta bairros.
Ainda pequeno em comparação ao similar colombiano, o programa do Rio
começa a ganhar corpo. Para setembro está prevista a reinauguração da
Biblioteca Pública do Estado (BPE), planejada como a matriz do programa.
Serão 15 000 metros quadrados de área, acervo de 200 000 livros e
estrutura para atividades culturais. A obra está linda. O reconhecimento
no exterior também já está acontecendo. No ano passado, a unidade de
Niterói foi aceita na comunidade internacional de bibliotecas Beyond
Access, com sede em Washington, nos Estados Unidos. Reinaugurada em
2011, a unidade passou a receber uma grande quantidade de moradores de
rua que viviam em seu entorno. Em vez de usar o local apenas para
acessar a internet e aproveitar o ar-condicionado, o grupo foi
incentivado a tirar documentos, fazer pesquisas e pegar livros
emprestados. Alguns conseguiram emprego, entre eles um jovem casal que
passou a fazer reciclagem de latas, alugou um quarto e reconquistou a
custódia do filho de 7 meses. “Estamos aqui para fazer com que essas
pessoas se sintam acolhidas. É uma troca que não tem preço”, resume a
diretora Glória Blauth. Eis aí mais uma prova do poder dos livros de
mudar a vida para melhor. Por Letícia Pimenta
Fonte: Veja Rio
Fonte: http://defender.org.br/2013/04/15/rj-a-redencao-pela-leitura/
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