A história pode ser contada na ponta da agulha. É o que atesta duas
obras recuperadas em São João Del-Rei (MG). São toalhas bordadas por
João Cândido, que liderou a Revolta da Chibata, quando diversos
marinheiros se mobilizaram em 1910 contra os castigos corporais da
Marinha brasileira. Os bordados, que faziam parte do acervo de um museu
desativado, deverão passar por um processo de restauração com recursos
do PAC das Cidades Históricas, programa coordenado pelo Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Os dois bordados chegaram à São João Del-Rei por intermédio de um
cidadão local. Antônio Manuel de Sousa Guerra, membro do 51º Batalhão de
Caçadores, foi convocado ao Rio de Janeiro para auxiliar no
policiamento da cidade durante a Revolta da Chibata. Naquele tempo, eram
comuns eventuais deslocamentos de contingentes para a então capital
federal. Antônio Guerra acabou incorporado a um grupo encarregado da
guarda dos marinheiros presos, encarcerados na Ilha das Cobras. Tendo
acesso aos porões, ele iniciou uma amizade com João Cândido, que lhe
ofereceu os bordados em troca do acesso aos jornais da época.
O historiador e professor da UFRJ, José Murilo de Carvalho, tomou
conhecimento das relíquias em 1985 e publicou um artigo onde analisou de
que forma elas contribuem para traçar um perfil do líder da Revolta da
Chibata. Ele revela como ficou espantado com a descoberta: “João Cândido
tinha a imagem de um marinheiro machão, alto e forte. Sua figura não
combinava em nada com o hábito de bordar, que era encarado como uma
prática feminina”.
Embora toscos, os bordados não são obra de quem se aventura pela
primeira vez. “Os navios a vapor já existiam, mas esses marinheiros
passaram por treinamento em embarcações a vela, de forma que eles teriam
muita familiaridade em trabalhar com cordas e todo tipo de nós. Não é
estranho imaginar que essa habilidade tenha alguma relação com o costume
de bordar”, especula José Murilo de Carvalho. O historiador ressalta
que era comum que os marinheiros buscassem passatempos diversos para
preencher as horas de inatividade, a bordo de um navio.
Para o historiador, a descoberta dos bordados permite construir a
imagem de um homem que não é aquele “brutamontes” mostrado pela
literatura da Marinha. “De um lado, ele era vilipendiado pelo discurso
oficial e, de outro, passou a ser exaltado e transformado num mito,
sobretudo pelo movimento negro. Sua reputação ficou entre a calúnia e a
mitificação. Os bordados permitem uma visão mais complexa e humana da
figura de João Cândido”, finaliza.
As obras
Denominadas Amôr e Adeus do Marujo, as obras trazem
temáticas distintas. A primeira traz um coração atravessado por uma
espada, cercado por flores, borboletas e pássaros, remetendo a uma
possível paixão. “Curioso é a forma como ele grafou amor, utilizando um
acento circunflexo. Ele lia, mas o grau de alfabetização não era muito
alto, o que justifica alguns erros de grafia”, diz José Murilo de
Carvalho.
Segundo o historiador, o Adeus do Marujo é um tributo à
amizade, mas traz um elemento interessante. Além do desenho, o
marinheiro grafou na toalha as palavras ‘liberdade’ e ‘ordem’, conceitos
que bem poderiam ser considerados antagônicos. “João Cândido ingressou
na Marinha aos 15 anos e cresceu numa instituição militar onde prevalece
a disciplina. Além disso, o lema republicano ‘ordem e progresso’ tinha
forte influência entre os marinheiros. Mesmo após sua expulsão, João
Cândido manteve um relacionamento sentimental com a instituição. Ele foi
visto idoso se despedindo quando o navio Minas Gerais foi desligado. A
liberdade, para ele, significava o direito a um tratamento que não fosse
assemelhado aos escravos, como os próprios marinheiros diziam. Mas sem
perder de vista a importância da disciplina”, explica José Murilo de
Carvalho. Por Léo Rodrigues
Fonte: http://defender.org.br/2013/04/24/sao-joao-del-rei-mg-bordados-ajudam-a-revelar-perfil-do-lider-da-revolta-da-chibata/
João Cândido, líder da Revolta da Chibata. (Domínio Público)
Fotos: Luciano Oliveira – Secretaria de Cultura de São João Del-Rei.
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