Tem nome de rio esta cidade
onde brincam os rios de esconder.
Cidade feita de montanha
em casamento indissolúvel
com o mar.
(Carlos Drummond de Andrade. Retrato de uma cidade. [1930]?)
onde brincam os rios de esconder.
Cidade feita de montanha
em casamento indissolúvel
com o mar.
(Carlos Drummond de Andrade. Retrato de uma cidade. [1930]?)
A
motivação para o estudo do passado quase sempre nasce a partir de
acontecimentos e questões com os quais nos deparamos no nosso presente e
no nosso viver cotidiano. Às vezes, ao passarmos repetidamente em um
lugar, despertamos também a vontade de estudá-lo e conhecer um pouco
mais de sua história. Assim aconteceu com o lugar ocupado pelo morro do
Castelo, onde ficavam os marcos de fundação e as construções mais
antigas da cidade, da época em que o Brasil ainda era colônia, e que São
Sebastião do Rio de Janeiro não passava de um pequeno povoado sobre um
morro.
Como qualquer outra grande cidade do mundo, o Rio de
Janeiro sofreu mudanças na sua geografia. A população se expandiu, tomou
os morros e as praias para si, ocupou espaços livres e criou novos
quando não havia mais para onde crescer. Em uma cidade espremida entre
os morros e o mar, o espaço é objeto de disputa física, social,
política, econômica e mesmo de memória. Nesse movimento de demolir para
depois construir (e reconstruir), o Rio foi ganhando novos contornos,
mas, ao mesmo tempo, apagando parte de sua história.
No momento em
que a cidade se prepara para celebrar 450 anos de fundação em 2015, e
sofre as intervenções que se julgam necessárias para tornar-se palco de
importantes eventos internacionais em 2014 e 2016, nos lançamos à tarefa
de refletir sobre como o Rio de Janeiro é marcado por extensas
alterações no espaço geográfico, urbano e na paisagem, em ocasiões nas
quais se torna protagonista da história nacional. Há mais de 90 anos, a
então capital se planejava para celebrar o primeiro centenário da
Independência do Brasil com uma grandiosa exposição internacional na
qual representaria o progresso da jovem nação. Aproveitava-se o ensejo
para concluir uma ação iniciada ainda na primeira década do século XX,
de inserir o Rio na modernidade e eliminar o máximo possível os ranços
de atraso ainda presentes nas ruas, morros e construções urbanas.
Se
nas duas primeiras décadas dos novecentos o lugar privilegiado dessa
transformação foi a região da avenida Central, nos anos de 1920 o foco
era a perturbadora sombra do morro do Castelo, que teimava em obscurecer
os avanços conquistados pelo bota-abaixo e pelas reformas da nova
capital Belle-Époque durante o governo do prefeito Pereira
Passos. A pretexto de melhorar a salubridade do ar, a circulação dos
ventos marítimos e impedir a disseminação das epidemias que ceifavam
sazonalmente uma parcela não pouco expressiva da população, desde o
período joanino já se estudava a proposta de arrasamento do Castelo,
local que no século XVI fora considerado seguro e estratégico por
Estácio de Sá para estabelecer em definitivo a cidade de São Sebastião.
Nos
anos 1920, o argumento da saúde pública é retomado com força, e não
esconde a principal intenção do prefeito Carlos Sampaio e de sua equipe
de engenheiros e sanitaristas: no ano em que se comemorava a
Independência do Brasil urgia acabar, enfim, com aquela mancha no
coração do Rio. Valiam-se dos argumentos e necessidades sanitaristas
para remover do centro aquele aglomerado de casebres que se espremiam no
topo e nas encostas do morro, entre um prédio e outro monumento
colonial, "botando abaixo" e retirando das margens da moderna avenida e
de seus belos prédios a pobreza e a desordem que não permitiam que o Rio
se civilizasse.
Obra de avançada engenharia e de grande
investimento levou mais de duas décadas para ficar pronta, e foi a
responsável por tentar extinguir parte da região mais antiga do Rio e a
memória de anos de domínio colonial entranhada nos seus prédios e
casario. Apesar do sucesso, ainda que custoso, da empreitada, a guerra
contra os morros da cidade não parou por aí. O próximo na lista dos
indesejáveis era o morro de Santo Antônio, que sobreviveu aos anos
seguintes, não sem alterações, mas acabou arrasado nos anos 1950, como
marco urbanístico do Plano Agache. Em 1925, o largo da Carioca, que
ficava aos pés do Convento de Santo Antônio, foi remodelado, o passado
removido para abrir as portas ao futuro.
Enfim, com a aceleração
das obras de desmonte do Castelo e de aterro da praia de Santa Luzia, a
Exposição do Centenário da Independência foi aberta aos visitantes na
data pátria em 1922. Apesar de várias novidades, como a iluminação
elétrica que permitia a visitação noturna, a primeira transmissão de
rádio no Brasil e sessões de cinema para os visitantes, na ocasião da
inauguração havia palácios e pavilhões inacabados e alguns ainda mal
começados. Ao longo dos dez meses aproximadamente em que esteve aberta
para visitação, os últimos prédios já concluídos, a exposição atraiu um
grande público desejoso de conhecer as belas construções e os avanços
industriais do Brasil e de outras nações. No entanto, um fato que nos
salta aos olhos é a ausência de menção aos acontecimentos de 1822 e a
seus personagens principais, o que também não passou em branco para os
homens daquela época, como o escritor Lima Barreto. Se a intenção dos
republicanos era diminuir a importância dos anos de colônia e império,
concentraram o foco das comemorações no presente "glorioso" que o país
vivia e no futuro promissor para o qual apontava.
Para contar essa
história, foram consultados dois fundos conservados pelo Arquivo
Nacional. Da Comissão Executiva da Exposição do Centenário da
Independência do Brasil vieram recibos e os diplomas da exposição, além
de preciosas informações sobre a organização de um evento nacional e
internacional tão grande.
O outro fundo, principal matéria-prima
para esta exposição virtual, é o acervo do fotógrafo e empresário Marc
Ferrez, e de seus filhos Júlio e Luciano. A família Ferrez foi uma das
mais destacadas no ramo da fotografia e do cinema no país, pioneiros não
somente nas técnicas fotográficas, como também no desenvolvimento de
métodos e na importação e fornecimento de aparelhos e materiais para os
profissionais que atuavam no Brasil, bem como os amadores praticantes da
arte. O patriarca da família, Marc Ferrez, cujo nascimento perfaz 170
anos em 2013, foi e continua sendo um dos mais destacados fotógrafos
brasileiros, que deixou registros valiosos sobre o Rio de Janeiro,
célebre pelo seu talento e sensibilidade para capturar as paisagens mais
belas da cidade, principalmente entre as duas últimas décadas do século
XIX e a primeira do XX.
Seus filhos Júlio e Luciano, autores de
praticamente todas as fotografias que compõem esta exposição, herdaram o
ofício e o olhar atento para reconhecer os acontecimentos e
transformações pelos quais a cidade e seus habitantes passavam naqueles
anos. É graças à disposição de ambos de registrarem amiúde as obras de
demolição e reconstrução na cidade em que nasceram, e de Gilberto
Ferrez, neto de Marc, que se dedicou a preservar a história da família,
que hoje podemos nos voltar para aquele tempo já muito ido e apre(e)nder
uma parte dessa memória física e afetiva do Rio de Janeiro que andava
um tanto esquecida.
Renata William Santos do Vale
Curadora
Curadora
Fonte: http://www.exposicoesvirtuais.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=252
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