À direita de quem segue a Avenida Amazonas, rumo a São Paulo, em
terreno bem próximo ao Centro de Convenções Expominas, definha um
símbolo da história ferroviária de Belo Horizonte: a Estação Gameleira,
inaugurada em 1917. Depois de muito descaso, enfim o ponto está prestes a
receber socorro e vai ser destinado à Escola Livre de Circo. Nesta
semana, as ruínas do imóvel da Região Oeste recebem oficialmente a
indicação para início do processo de tombamento em esfera municipal.
Força-tarefa envolvendo agentes do poder público trabalham com o
prazo inicial de 30 dias para que todas as medidas emergenciais sejam
tomadas pelo futuro do bem. Entre elas, a cessão do imóvel do governo
federal para o município. Para o promotor Marcos Paulo de Souza Miranda,
da Coordenadoria das Promotorias Estaduais de Defesa do Patrimônio
Cultural e Turístico de Minas Gerais, esse é o primeiro passo importante
para o “começo da solução de um problema”.
O promotor de Justiça vê a situação do bem como um “péssimo exemplo”
de como é tratado o patrimônio ferroviário no país e espera que ele seja
finalmente recuperado e devidamente socializado. A luta pela estação
não é de hoje. Em 2006, o Ministério Público e o Patrimônio Histórico e
Cultural de Belo Horizonte entraram com ação civil pública na Vara da
Fazenda Municipal em defesa do patrimônio, com pedido de liminar para
que a extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e a Ferrovia
Centro-Atlântica (FCA) tomassem providências. O imbróglio entre a RFFSA e
a FCA apenas contribuiu com o abandono e a degradação do endereço, sob a
guarda do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes
(Dnit).
Situação triste, que faz o ferroviário aposentado Vantuil Narciso de
Lacerda, de 80 anos, respirar fundo e voltar no tempo para reviver o
espaço. “Não gosto nem de lembrar de como era tudo neste lugar. Aqui,
todos os dias, trabalhavam 70 homens e circulavam dezenas de pessoas.
Tudo era muito limpinho… naquele lugar, a gente tinha uma ponte
rolante”, aponta. Com os olhos marejados, Vantuil fala da alegria de ter
sustentado a família de 17 filhos – 14 legítimos e três de criação –
com o trabalho de manobrista na estação ferroviária.
Os filhos do ex-ferroviário também trabalharam no lugar, vendendo
doces e bolos na plataforma. A mulher, Olira Xavier Lacerda, de 69,
companheira de meio século de casamento, elogia o parceiro: “É um homem
maravilhoso. Por muitos anos, a vida dos passageiros esteve nas mãos do
meu marido. Era ele quem virava os trilhos, e nunca deixou que nada de
ruim acontecesse na estação”.
Rotina e cuidados com o lugar, que, em parte, se mantém. O velho
Vantuil, de notável saúde e preparo físico, é quem, até hoje, toma conta
do que sobrou de pé no terreno público. “Ontem mesmo, à meia-noite, eu
estava dentro da estação para ver se a bandidagem estava lá”, conta.
Coragem que já lhe custou um corte na mão, feito a facão, resultante de
uma agressão de um carroceiro que queria despejar lixo nas ruínas do
imóvel a caminho do tombamento.
A mulher, Olira, é quem fala do ocorrido: “Deu até polícia. A gente
não gosta de confusão, faz de tudo para evitar, mas não teve jeito. O
sujeito avançou no meu marido com o facão, dizendo que isso aqui não é
dele”. Vantuil, fortaleza de chapéu, botina de couro e sorriso amigo,
ouve a mulher, tomada por orgulho. “Meu marido diz que, enquanto viver
aqui, vai proteger o lugar”, sorri, demonstrando cumplicidade.
Leandro Couri/EM/DA Press
A dona de casa critica o descaso com a estação. “Estão fazendo a área
de depósito de lixo. É uma pena. Está perigoso, atrai gente ruim. Outro
dia, tentaram estuprar uma mulher ali, à luz do dia”, denuncia. Olira
volta a afirmar que quem cuida do lugar, do jeito que pode, é seu
marido. Revela que, há pouco tempo, Vantuil gastou R$ 500 para fazer uma
cerca de arame farpado e tentar conter invasões.
Contudo, feliz com o rumo que os filhos tomaram, “todos bem
encaminhados na vida”, deixa as preocupações de lado para falar de
alegrias. “Vivemos um tempo maravilhoso aqui, a época do trem Vera Cruz e
dos trens de subúrbio, até o fim dos anos 1980”, relembra. Traz à
varanda foto de “mil novecentos e antigamente” para mostrar às visitas.
Nela, cena de flerte com o companheiro, na antiga estação. Repetem a
cena, no banco de madeira, para nova fotografia.
Na mesa farta da casa à beira dos trilhos, construída nos anos 1980,
café e bolo de fubá. Com a simplicidade da boa gente mineira e
hospitaleira, o ferroviário diz fazer correr apenas os maus elementos
que querem depredar a estação. “Se vem para o bem, é amigo e é muito bem
recebido”, diz, cheio de graça com os cães vira-latas Boca Branca e
Lambari, serelepes aos pés das cadeiras. “Podem ficar sossegados. Eles
estão aqui apenas para avisar. Não mordem ninguém”, nos garante.
Símbolo
O diretor de Patrimônio Cultural, gestor de departamento da
Prefeitura de Belo Horizonte, Carlos Henrique Bicalho, vê com entusiasmo
o futuro da Estação Gameleira. “Com o tombamento, assim que efetivado,
vai haver mais autonomia para a busca de recursos e alternativas para a
sua recuperação e conservação”, diz. Bicalho, arquiteto e restaurador,
ressalta a importância do bem e defende que, recuperado, o espaço seja
de uso coletivo pela memória da cidade. Lamenta ainda toda a morosidade
no trâmite nas esferas públicas, que faz cair aos pedaços um símbolo
importante da cidade.
Saiba mais – Estação Gameleira
Inaugurada em 1917, a Estação Gameleira marcou época com a linha
Paraopeba, que traçava caminho da capital mineira ao Rio de Janeiro. Em
Minas Gerais está grande parte do maior patrimônio brasileiro à beira
dos trilhos, erguido entre o fim do século 19 e o início do século 20.
São mais de 1,5 mil estações ferroviárias. Muitas delas, como a
Gameleira, à espera de cuidados e novos tempos a serviço da população. Por Jefferson da Fonseca Coutinho
Fonte: http://www.defender.org.br/belo-horizonte-mg-antiga-construcao-da-gameleira-recebe-indicacao-para-ser-tombada/
Leandro Couri/EM/DA Press
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