Inspirado na arquitetura moderna francesa, o Mercado de São José, no Recife, adaptou-se ao clima e à cultura locais
Rosilene Gomes Farias
Naquele Sete de Setembro, o Recife acordou festivo. Era uma
quinta-feira de 1875, e homens e mulheres, portando bandeirinhas e
vestidos com seus melhores trajes, dirigiam-se aos jardins do Palácio do
Campo das Princesas, onde assistiriam à apresentação de algumas bandas
marciais e teriam a oportunidade de acompanhá-las em um cortejo que
impregnava de música as principais ruas da cidade.
A agitação popular tinha um motivo especial, para além das comemorações
da Independência: no bairro de São José, por volta das 11 horas, seria
inaugurado o novo mercado do Recife. Era o primeiro edifício feito com
estrutura em ferro pré-fabricada em Paris e montada no Brasil. Beleza,
modernidade e higiene traziam os ares da França para nossas terras.
Aqueles que chegavam ao grande edifício podiam sentir no ar o perfume
das folhas de canela que ornamentavam as colunas e se espalhavam por
todo o assoalho do lugar.
Muitos dos que participavam da festiva inauguração já deviam ter ouvido
histórias sobre o passado remoto daquelas redondezas, quando havia
apenas uma praia onde se viam pescadores atracando suas canoas ou saindo
para o mar. No século XVIII, um mercado e uma ribeira (construção para
venda de pescado) foram erguidos ali para garantir condições mais
higiênicas à comercialização de peixes e outros produtos, substituindo a
tradição dos pescadores de venderem diretamente de suas embarcações.
Estas novas construções ficavam atrás do Hospício de Nossa Senhora da
Penha, onde residiam missionários capuchinhos italianos. O mercado
público tinha 62 casinhas interligadas por arcadas em torno de uma praça
quadrada e, no centro dela, uma ribeira de peixe formada por 128
bancas. No meio das bancas da ribeira foram construídas duas colunas
dóricas, que sustentavam um grande arco de entradatodo ornado com
motivos barrocos. Suas laterais davam acesso à praia.
Em 1789, o terreno foi requisitado judicialmente pelos padres
capuchinhos, que disseram ter comprado a propriedade. Eles alegavam que o
convento achava-se protegido por um Decreto Real de Dom João V, que
proibia construções nas proximidades do Hospício, na direção do mar.
Também informavam a compra do terreno, pelo qual pagaram 430 mil réis
Reclamavam que o mercado exalava um odor forte e desagradável que os
impedia de respirar livremente. Mas a Câmara confirmou a manutenção do
Mercado da Ribeira no local e ainda sugeriu que, para terem uma melhor
vista do mar, os capuchinhos deveriam construir um mirante da altura da
torre do seu edifício.
No Recife do início do século XIX, alguns locais de venda de alimentos
eram fiscalizados pelo governo e havia o comércio informal, praticado
nas ruas por escravos e por pessoas livres pobres. Eles vendiam frutas e
verduras, muitas cultivadas nos sítios que circundavam a cidade e que
eram comercializadas em tabuleiros, mesinhas ou toalhas estendidas sobre
o chão.Com a construção de um novo mercado, as autoridades pretendiam
ampliar o controle sobre a venda de alimentos e aumentar a arrecadação
de impostos. A medida também acompanhava o processo de modernização pelo
qual passavam os grandes centros brasileiros, tentando adotar modelos
europeus de organização do espaço urbano.
O Mercado de São José foi projetado pelo francês João Luís Victor
Lienthier, engenheiro da Câmara Municipal do Recife, em 1871. Teve como
modelo o Mercado de Grenelle, em Paris, cujo projeto havia sido
publicado dois anos antes na revista Nouvelles Annales de La Construction.
A concorrência para a construção foi vencida pelo empresário José
Augusto de Araújo.Os arrematantes dessas obras eram, na maioria das
vezes, pessoas abastadas, entre elas latifundiários e proprietários de
escravos.No século XIX, com a expansão das obras públicas, os
empreiteiros tornaram-se um grupo econômico importante no Recife,
erguendo fortunas pessoais.
Para detalhar o projeto e inspecionar a execução da estrutura de ferro,
José Augusto de Araújocontratou, na França, o engenheiro Louis-Léger
Vauthier, que já havia estado em Pernambuco nos anos 1840 a trabalho. Na
época, contratado pelo então presidente da província, construíra
pontes, estradas e edifícios públicos,entre os quais se destacava o
Teatro Santa Isabel, exemplar do neoclassicismo no Brasil. Suas obras
eram sempre precedidas pelo estudo das condições climáticas e do
contexto da sociedade e da cultura locais. Para o Mercado de São José,
Vauthier sugeriu modificações no projeto original que motivaram muitos
debates na Câmara Municipal.Ele foi acusado de pretender apenas reduzir
as despesas do arrematante, causando dificuldades para o controle dos
gastos da obra.A Câmaratambém alegou que, sendo aquele o mesmo projeto
adotado para o parisiense Mercado de Grenelle, e tendo sido aprovado por
engenheiros capacitados, certamente serviria ao Recife sem
reformulações.
O engenheiro fez prevalecer sua proposta: realizou reduções de volume
em diversos elementos de ferro, situou os compartimentos ao longo das
paredes, modificou a cobertura prevista de folhas de ferro para telhas
de barro, substituiu as venezianas de vidro por madeira, propôs um
sistema de abastecimento de água e rede de esgoto e trocou os tecidos de
arame por grades de ferro. As intervenções proporcionaram mais
funcionalidade, segurança e higiene para o lugar. Embora semelhante aos
mercados construídos na Europa do século XIX, o Mercado de São José
nasceu adequado ao seu ambiente.
A estrutura foi pré-fabricada em Paris, entre 1872 e 1875, e trazida
para o Brasil. Ocupando uma área de 3.540m², o edifício é formado por
dois pavilhões retangulares separados por uma rua coberta. Possui
colunas elegantes de ferro fundido com 7,60m de altura, ligadas entre si
por arcadas do mesmo metal e artisticamente construídas, sustentando
toda a cobertura do edifício, igualmente metálica e revestida com telhas
marselha Montchanin, reputadas no seu tempo como as melhores da França.
As extremidades do telhado, em forma de animais, eram uma das
características art-noveau do prédio. A primitiva calçada que
circundava todo o edifício era feita de pedras de Lisboa, possuía 12
chafarizes e um sistema de esgotos que proporcionava um aspecto
higiênico ao lugar.
O mercado foi inaugurado com 377 compartimentos de diversos produtos,
29 pedras de peixe – forma como, na época, se referiam aos balcões onde
eram (e ainda são) tratados e expostos os peixes – e 34 barracas
internas para vender carnes, peixes, verduras, frutas, flores, cereais e
caldo de cana, além de 70 outras espalhadas pelas calçadas em seu
entorno. A população passou a frequentar assiduamente o novo espaço,
onde podiam adquirir os melhores artigos existentes no Brasil. Com leis
específicas para regular a circulação no interior do edifício, as
autoridades tentaram transformar um espaço popular, associado à ideia de
desordem e insalubridade, em um ambiente sujeito a regras de conduta e
de higiene. Era uma legislação pensada para oferecer ao lugar
características semelhantes às dos centros de venda europeus.
O São José cresceu muito desde a sua fundação, e nunca deixou de
funcionar como mercado. Alguns pequenos boxes foram acrescidos no
interior dos pavilhões, e outros surgiram na parte externa,
especializados principalmente na venda de refeições. Ao longo dos anos,
camelôs ocuparam a Praça Dom Vital, que fica em frente ao mercado, e as
calçadas que circundam o edifício foram tomadas por barracas que vendem
queijos, frutas, verduras e legumes, ervas e raízes.
Segue o texto no link abaixo:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/perspectiva/a-ferro-e-a-frutas
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