terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O retorno de um revelador mapa do RS do século 18 que era dado como perdido

Pesquisadores narram descoberta de um tesouro reencontrado após mais de 260 anos que revela divisões do território gaúcho à época do Tratado de Madri e da Guerra Guaranítica

Por Artur H. Franco Barcelos
Professor associado da Furg, autor, entre outros, de “Espaço e Arqueologia nas Missões Jesuíticas” (2000)

Por Junia Ferreira Furtado
Professora sênior da UFMG, autora, entre outros, de “O Mapa que Inventou o Brasil” (2013)

O ano era 1756. Militares espanhóis chegam aos aposentos do padre jesuíta Tadeu Xavier Henis (também citado como Thadeo Enis), na Missão de San Lorenzo. Recolhem seus papéis e o acusam de haver insuflado os indígenas Guarani em sua rebelião contra o Tratado de Limites entre Portugal e Espanha, conhecido como Tratado de Madri. Com o padre, encontraram um diário que estava em latim, escrito com letra pequenina, conforme contam os capitães Don Antonio Catani e Don Joseph Gómez, que se apossaram dele.

O original desapareceu ainda naqueles tumultuados dias de 1756. O que restou foi sua tradução ao espanhol, feita pelo Frei Manuel Londoño a pedido de Don José Joaquin de Viana, governador de Montevidéu. O diário continha um relato detalhado dos acontecimentos principais da revolta dos Guarani, conhecida como Guerra Guaranítica.

O padre Henis acompanhou os deslocamentos dos Guarani quando estes foram ao encontro das tropas portuguesas que haviam fundado um forte nas margens do Rio Pardo, chamado então de Rio Jobi. Vinham daí as suspeitas de sua participação, incitando os indígenas a se rebelarem.

No Tratado de Limites, os Reis de Espanha e Portugal haviam pactuado uma troca de territórios como forma de ajustar as fronteiras entre os dois impérios coloniais. A troca incluía parte das terras que ficavam a Leste do Rio Uruguai, as quais seriam entregues aos espanhóis com a condição de que a Colônia do Santíssimo Sacramento, forte português localizado na margem norte do Rio da Prata, passasse em definitivo aos domínios espanhóis. Para os espanhóis, parecia valer a pena abrir mão de amplas extensões de terras entre o Rio Uruguai e o litoral Atlântico para resolver de vez o problema da presença dos portugueses na Colônia, tão próximos de Buenos Aires. Contudo, o acordo havia sido fechado sem que os jesuítas e os Guarani tivessem sido consultados.

Quando os demarcadores chegaram na região, em 1752, e começaram a marcha por terra para definir a linha da fronteira, foram surpreendidos com a reação dos Guarani das Missões, que os interpelaram no posto da estância de San Miguel chamado Santa Tecla, na atual Bagé. A resistência durou quase quatro anos, até 1756, quando os Guarani foram derrotados em uma última batalha, em Caiboaté, hoje São Gabriel. Três dias antes daquela batalha, em 7 de fevereiro de 1756, foi morto o mais celebre líder dos Guarani, o Alferes de São Miguel Sepé Tiaraju.

O motivo da rebelião não era apenas por que os Guarani teriam que deixar os núcleos urbanos de sete de suas Missões com os jesuítas. Pesava muito o fato de que os portugueses ficariam com as enormes estâncias de gado que se estendiam por uma ampla área da então chamada Banda Oriental do Rio Uruguai, além dos ervais nativos que ficavam na região da atual fronteira com Santa Catarina e de onde extraíam a erva-mate, fundamental para as trocas comerciais com as cidades espanholas. E tudo isso estava detalhadamente registrado em um mapa feito pelo padre Tadeu Henis.

Esse mapa não constava dos itens apreendidos pelos espanhóis em San Lorenzo (atual sítio arqueológico de São Lourenço Mártir, em São Luis Gonzaga). Porém, no Arquivo Histórico Nacional (AHN), em Madri, há um mapa cujo título é “Copia del Plano del P. Tadeo Enis de las tierras de San Miguel con sus estancias y puestos confinantes, pueblos y portugueses”. Como o próprio título explica, esse mapa é uma cópia espanhola de outro feito pelo Padre Tadeu Henis. Em outro arquivo espanhol, o Arquivo Geral de Simancas, há um desenho com frases em latim e uma cópia deste com o seguinte título: “Mapa que se hallo incluso en este Diario el que se conoce por la letra estar delineado por el P. Thadeo Xavier Enis de la Compania de Jesus”.

Apesar do título, não se tata de um mapa, mas sim de um desenho em perspectiva, que mostra as posições portuguesas nas margens dos rios Jobi (Rio Pardo) e Jacuí durante a Guerra Guaranítica. E, como consta, esse desenho estava junto ao diário do Padre Henis. Assim, sabia-se que o padre havia feito um mapa, pois a cópia estava arquivada há muito tempo na Espanha. Mas onde estaria o original? Foi preciso esperar 262 anos para termos a resposta a esta pergunta.

Camadas de informações

Em 2018, Barry Lawrence Ruderman colocou à venda um mapa manuscrito colorido em pergaminho, datado do século 18. Naquela ocasião, Junia Furtado, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e uma das maiores especialistas em cartografia histórica do Brasil, auxiliou na identificação do mapa como sendo do período das Missões Jesuíticas e relacionado à Guerra Guaranítica. O mapa foi adquirido pela John Carter Brown Library (JCB), que pertence a Brown University, em Providence (EUA). No momento da venda do mapa, seu autor não foi identificado e a data exata de sua produção não foi indicada. Após a aquisição do mapa pela JCB, Junia Furtado e Artur Barcelos, professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e especialista em mapas jesuíticos e na História das Missões Jesuíticas, somaram seus conhecimentos e iniciaram um estudo detalhado do mesmo. A conclusão é de que se trata do mapa original do Padre Tadeu Henis. E mais: tudo indica que os Guarani participaram da elaboração da mapa.

O título do mapa é “Terrarum S. Michaelis Oppidi Americae Meridionalis in Provincia olim Tape dicta, trans Flumen Uruguai Siti, cum adjacenteibus Simul aliorum oppiorum terris & vicinia Lusittanorum, acuratta descriptio”. Em tradução livre: “Descrição detalhada das terras de São Miguel na América do Sul, na antiga Província do Tape, na outra margem do Rio Uruguai, com as terras adjacentes a outras localidades e aos portugueses”.

Trata-se de uma peça extraordinária em todos os sentidos. Primeiro por haver estado desaparecida por tanto tempo. Por questões legais, a identidade de seus proprietários anteriores não se tornou pública. O fato de ter sido adquirido por uma instituição de pesquisa permitiu seu estudo e sua divulgação. Seu conteúdo pode ser estudado como em uma escavação arqueológica, por camadas. Primeiro está sua descrição: é um mapa em pergaminho (pele de cordeiro), com 67x52cm. A coloração amarelada se dá pela ação do tempo sobre o pergaminho, o mesmo ocorrendo com as tintas usadas, o nanquim ou a tinta da Índia, que dá a coloração preta, e a ferrogálica que, com o tempo, alcança uma coloração marrom avermelhada.

As outras camadas são seu conteúdo. O mapa possuí várias informações sobre momentos e lugares ligados à Guerra Guaranítica, como visto em “Aqui llegaron a 1753 los demarcadores de España y Portugal, próximo a Santa Tecla”; ou “Tierras de San Luis ocupadas de los portugueses”; ou ainda o local da batalha de Caiboaté, entre outros. Olhando para além do episódio da guerra, o mapa demonstra a organização do território que pertencia às Missões. Na parte superior (o mapa deve ser virado em sentido horário para estar orientado no sentido correto), estão representadas as sedes das Missões de San Nicolas, San Luis, San Lorenzo, San Miguel, San Juan e Sto. Angel, faltando apenas San Borja das sete que ficavam à Leste do Rio Uruguai. Delas partem os caminhos que, passando pelas estâncias próximas, menores, e cruzando a Serra Grande, levavam até as estâncias maiores, cuja mais extensa era a de San Miguel.

Ao longo desses caminhos, há capelas e postos das estâncias, como indica a legenda em latim e os símbolos desenhados no mapa. Assim, ficamos sabendo que havia três postos maiores, principais, San Tiago, San Xavier e Santo Antonio. E podemos ver os limites entre as estâncias, marcados por rios, arroios e coxilhas.

Em uma camada mais profunda de sua leitura, o mapa revela a memória indígena, pois nele há vários lugares ao sul da Serra Grande denominados tetângue, que em guarani significa “que foram dê...”. Assim, temos, por exemplo, San Miguel tetângue, Natividad tetângue, Jesus Maria tetângue, os quais assinalam onde estavam as Missões do século 17, que existiram entre 1626 e 1640, e foram abandonadas após os ataques dos bandeirantes. Essas primeiras Missões concentravam-se justamente na Depressão Central. Há ainda uma quantidade expressiva de expressões em guarani. Essas referências de lugares e acontecimentos indicam que os indígenas foram coautores do mapa, pois eram os que melhor conheciam o território e sua história, bem como os principais interessados em ter suas terras registradas em um mapa.

Por tudo isso, e por ser o mapa que melhor apresenta a forma como as Missões Jesuíticas tinham um domínio territorial e econômico sobre mais de um terço do atual Rio Grande do Sul, pode-se dizer que se está diante de um dos mais importantes documentos da história colonial da Região Sul do Brasil. Em breve, os resultados das pesquisas advindas de seu estudo serão publicados. E as análises prosseguirão, pois trata-se de uma fonte quase inesgotável de informações históricas.

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2024/01/o-retorno-de-um-revelador-mapa-do-rs-do-seculo-18-que-era-dado-como-perdido-clrthvp85002l016w03o8v9on.html





















O mapa redescoberto abrange uma ampla área do atual Rio Grande do Sul. É delimitado pelo que hoje conhecemos como a região Noroeste e o Rio Uruguai (ao Norte), rios da Bacia do Rio Jacuí (a Leste), Rio Camaquã e Campanha (ao Sul), e Rio Ibicuí (a Oeste). A maior parte do território era formado pelas estâncias de gado das Missões, identificadas pelos nomes e devidamente demarcadas em seus limites e divisas. Reprodução: John Carter Brown Library
Artur Barcelos / Arquivo pessoal




















Já esta versão é a cópia que foi feita pelos espanhóis e se encontra em Madri. Uma curiosidade é que, neste mapa colorido, há termos em guarani que não estão no original, o que, segundo os pesquisadores, é um indício de que os indígenas podem ter atuado na confecção de ambos. Reprodução: AHN-Madrid
Artur Barcelos / Arquivo pessoal