“São mais de 340 anos de história perdidos. O dano visual é horrível, o
horizonte do Golfo do Panamá se perdeu, não se vê mais a península”,
lamenta Hildegard Vasquez, presidente da Fundación Calicanto, uma
organização que tem como missão a proteção do patrimônio histórico e
humano do Panamá.
A arquiteta se refere ao viaduto de seis pistas com 2,8 quilômetros de
extensão que rasga o mar em frente à península do bairro histórico de
Casco Antiguo, na capital do país, tombado em 1997 como Patrimônio da
Humanidade pela UNESCO. A obra, da empreiteira brasileira Odebrecht, faz
parte da nova rede viária do Panamá, a Cinta Costera, contratada por
cerca de 1 bilhão de dólares – dos quais US$ 780 milhões foram para o
viaduto que interliga duas avenidas fazendo a conexão da parte sul da
Cidade do Panamá para as pontes que levam às cidades-dormitórios.
Cinta costeira diante do Patrimônia Mundial da Humanidade, Casco Antiguo, uma enseada estreita protegida naturalmente por rochas - foto
Roberto Quintero/Agência Pública
Licitado em 2010, o projeto previa um túnel, e não um viaduto, que
pouparia a belíssima e histórica paisagem de Casco Antiguo, uma enseada
estreita protegida naturalmente por rochas, reforçadas pelos espanhóis
que para ali se mudaram depois que o primeiro assentamento na baía do
Panamá, o Panamá Viejo, foi destruído por piratas em 1671. Vencida a
licitação, porém, a Odebrecht substituiu o túnel previsto pelo Viaduto
Marinho, que vai de uma ponta a outra da enseada, formando uma muralha
entre o bairro histórico e o mar do Golfo do Panamá. Atualmente, mais de
60% da obra está concluída.
Cerca de 14 entidades civis, entre elas a Calicanto, organizaram uma
frente chamada “Orgullo” para lutar pela suspensão do viaduto que, além
de por em risco um patrimônio da humanidade, “viola as normas de
contratação pública”, segundo o advogado Félix Wing, do Orgullo,
especialista em direito ambiental e internacional. De acordo com ele, as
leis panamenhas não permitem modificar uma obra já licitada se as
alternativas não estiverem explicitadas na licitação, e a obra “retira
de Casco Antiguo a sua relação intrínseca com o mar e o entorno e
impacta negativamente a dinâmica das ondas, das marés e da corrente
marítima, que são cruciais para garantir o futuro do saneamento natural
da baía de Panamá”.
Na última semana de junho, durante a 37° Assembleia do Comitê de
Patrimônio Mundial da UNESCO, em Phnom Penh, no Camboja, que reuniu
representantes de 101 países para discutir a situação dos sítios
protegidos Atualmente 981 propriedades em 160 diferentes países/nações,
das pirâmides do Egito ao Parque Nacional do Iguaçu, no Brasil fazem
parte da lista de Patrimônio Mundial.
O debate ganhou proporções internacionais com a tentativa de inclusão
do sítio arqueológico Casco Antiguo – Panamá Viejo na lista de
patrimônios em risco, o que ocorre quando o governo de um país não
cumpre a obrigação de proteger o patrimônio tombado. O motivo é
justamente a polêmica obra, como explicita o documento oficial elaborado
pelo comitê técnico da UNESCO para a ocasião:
“O Centro do Patrimônio Mundial e os Órgãos Consultivos ressaltam os
impactos visuais negativos do Viaduto Marinho, que irá transformar o
cenário do Centro Histórico. Eles observam ainda que o viaduto tem uma
estrutura muito forte, com um alto impacto visual, que não se integra
harmoniosamente com o distrito histórico e estabelece um contraste
indesejável no que diz respeito ao seu contexto marítimo”.
“As alternativas ao viaduto não foram suficientemente exploradas e a
construção já começou, sem permitir que o Comitê do Patrimônio Mundial
tivesse tempo de avaliar e identificar as possíveis recomendações”,
afirma o mesmo documento. E prossegue: “Dado o atual grau e extensão de
impactos negativos sobre o valor excepcional universal da propriedade,
derivados da construção do Viaduto Marinho, e do estado de conservação
do prédio histórico, o Patrimônio Mundial e os Órgãos Consultivos
afirmam que o Comitê deve inscrever esta propriedade (Casco
Antiguo-Panamá Viejo) na lista de Patrimônio Mundial em Perigo”.
Mas, embora o corpo técnico tenha decidido contra a obra, a Assembleia
decidiu, por voto, não incluir o marco histórico na lista negra da
UNESCO. O Comitê do Patrimônio Mundial, porém, fez diversas
recomendações ao governo panamenho, entre elas a visita de um grupo de
técnicos da UNESCO e do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
para avaliar a situação até fevereiro de 2015, quando o Comitê irá
avaliar novamente se deve incluir ou não Casco Antiguo-Panamá Viejo na
lista de Patrimônio em Risco.
Prejuízos ambientais e disputas judiciais
Em cumprimento à lei panamenha, o Ministério de Obras Públicas fez um
estudo de impacto ambiental da construção do viaduto em que reconhece
entre os possíveis impactos ambientais provocados pela obra a
contaminação da água do mar pelo manejo inadequado de resíduos e pelo
derrame acidental de combustíveis e graxas; o transporte e acumulação de
sedimentos; a contaminação do ar por ruído, pó e emissão de gases pelos
veículos; a perda do cenário e paisagem natural e riscos ao patrimônio
subaquático.
O governo panamenho, porém, liberou a obra, anunciada como a grande
solução para o problema de tráfego. Segundo o Ministério de Obras
Públicas, o túnel previsto no projeto licitado era apenas “uma
referência básica de design”, e a empresa ganhadora poderia apresentar
um novo projeto, desde que mais barato – o projeto atual custa US$ 103
milhões a menos que o previsto.
“Além da construção, a manutenção também fica mais em conta do que a
opção do túnel”, explicou o ministério em uma nota oficial, que
prossegue: “A ponte marinha, além de constituir-se na solução viária
mais eficiente, oferecerá novos espaços e cenários de uso público que
redundarão em benefícios econômicos, sociais e culturais para todos os
panamenhos”.
Um benefício que é rechaçado pelos moradores de Casco Antiguo, como
Patrizia Pinzón, presidente da Associação de Vizinhos e Amigos de Casco
Antiguo: “Vão alterar as marés, aumentar a poluição com as fumaças dos
carros, o barulho, colocam em perigo o Patrimônio da Humanidade e isso
não vai resolver o problema do trânsito: é só um jeito mais rápido de
chegar a uma ponte que já está super congestionada”, diz.
O documento técnico da Unesco destaca o mesmo problema apontado por
Patrícia: “Não há justificativas fundamentadas que indiquem que o
viaduto vai trazer soluções de longo prazo de maneira eficaz e,
sobretudo, de forma sustentável para essas questões de trânsito”.
À Pública, a Odebrecht informou através da sua assessoria que
“igual a todos os projetos que realizam, com o Projeto Cinta Costera 3, a
empresa cumpriu totalmente a lei panamenha e as disposições das
autoridades do país”. Além disso, a empresa afirma que “até onde tivemos
conhecimento, nenhuma organização apresentou denúncia diante das
autoridades correspondentes sobre essas supostas violações da lei”.
Não é o que dizem as pessoas contrárias às obras. A Fundação Calicanto
apresentou uma demanda no Tribunal Administrativo de Contratações
Públicas pedindo a anulação da licitação que a Odebrecht ganhou para
construir a fase três do Cinta Costera. O pedido foi negado e o advogado
Ramón Arias, que faz parte do escritório que protocolou a interpelação,
entrou com recurso na Suprema Corte Federal reafirmando o pedido de
cancelamento da licitação.
Vista do Casco Viejo, antes da obra executada pela Odebrecht, empresa brasileira que afirmou ter cumprido com a lei panamenha - Foto:
Agencia Pública
No documento, ao qual a Pública teve acesso, são levantados 22
considerações contrárias à obra, alegando essencialmente que a licitação
contrariou normas e leis panamenhas de proteção ao patrimônio e de
contratos públicos. As considerações 13° e 14°, por exemplo, afirmam que
“por se tratar de um projeto que será construído dentro do Conjunto
Monumental Histórico de Casco Antiguo na cidade do Panamá, os documentos
que formam a licitação deveriam estar sujeitos a legislação protetora
deste sítio histórico, o que não ocorreu. A entidade licitante, neste
caso, o Ministério de Obras Públicas não percebeu que a alternativa
opcional que é dada na licitação aos proponentes é ilegal, já que a
normativa proíbe expressamente os aterros ou corredores marítimos
construídos fora da muralha da cidade do Panamá”.
Essa apelação, que segundo Arias “nunca foi levada adiante pela Suprema
Corte”, foi feita antes do anúncio da construção do viaduto, quando o
único documento público sobre a obra era o contrato firmado entre a
Odebrecht e o MOP em que se previa a construção de um túnel, mas que
deixava aberta a opção da empresa escolher outra obra mais barata, com
menor custo de manutenção.
Também há diversos questionamentos levantados por membros do “Orgullo” e
por advogados, no Ministério de Finanças, no Instituto Nacional de
Cultura, no Ministério de Obras Públicas. Nenhum deles obteve alguma
resposta favorável.
Conflito de interesses
Desde 2008 o Comitê do Patrimônio Mundial vem expressando sua
preocupação com o estado de conservação do sítio arqueológico Casco
Antiguo – Panamá Viejo: “São diversos prédios históricos em
deterioração, conflitos de interesse sobre o uso, administração e
conservação da área, deficiência na implementação de uma lei para
proteger o local, demolições ao redor, retirada forçada de ocupantes e
posseiros do local”, diz o relatório daquele ano.
Em 2009 uma missão da entidade avaliou que as obras da Cinta Costera –
então em fase inicial – haviam sido feitas “sem a realização de estudos
de impacto ambiental ou de dano ao patrimônio”, e pior, “sem informar o
Comitê do Patrimônio Mundial” – os locais tombados pela Unesco passam a
“pertencer a toda Humanidade” e os países são obrigados a relatar os
eventos que se referem a cada sítio.
Além disso, a missão observou que a Fase 3 do projeto – a construção do
viaduto pela Odebrecht – poderia ter um impacto sobre o sítio Casco
Antiguo-Panamá Viejo e pediu ao Panamá a apresentação de um relatório
final, incluindo a análise e monitoramento dos impactos. Desde então, os
repetidos relatórios entregues pelo governo panamenho foram
considerados insuficientes pelo corpo técnico do órgão.
Por isso, os ativistas que lutam pela proteção do patrimônio,
revoltaram-se com a decisão da Assembleia da UNESCO de não incluir o
sítio arqueológico panamenho entre os patrimônios em risco. “Quem mais
perde com isso, fora as pessoas de Casco, é a UNESCO. Que credibilidade
eles vão ter? O documento deles pode dizer qualquer coisa, mas não muda a
realidade. O fato é que o viaduto está quase pronto e eles poderiam ter
impedido isso”, diz Patrizia Pinzón.
Durante a preparação da Assembléia, o grupo “Orgullo” enviou cartas,
documentos e fotografias para denunciar os problemas com as obras a cada
um dos delegados oficiais, bem como Ban Ki-moon, secretário-geral da
ONU. O governo panamenho – que não tinha direito a voto na Assembleia –
levou para a reunião da UNESCO uma delegação de 13 pessoas – uma das
maiores presentes no evento. Havia representantes do Patrimônio
Histórico do Panamá, o ministro das relações exteriores, da Oficina
Casco Antiguo, de consultorias e do Instituto Nacional de Cultura.
Entre eles, também, havia dois funcionários e um consultor da
Odebrecht. Yuri Kertzman, diretor do Projeto Cinta Costera, Helio
Boleira, diretor sênior da empresa e Juan Herreros, consultor externo de
arquitetura, aparecem na lista oficial da UNESCO como sendo membros do
Instituto Nacional de Cultura.
Em nota à Pública, a empresa brasileira admitiu que seus três
representantes estiveram na delegação do Panamá, a convite do Instituto
Nacional. Todos os gastos, segundo a nota, foram pagos pela Odebrecht.
Na lista oficial do evento, porém, eles não são assinalados como
enviados da Odebrecht.
A delegação panamenha também contou com a ajuda da delegação do Brasil,
de acordo com a imprensa do Panamá. Segundo jornais, a delegação
brasileira apresentou um projeto de um documento com modificações ao
estipulado pelo Comitê, evitando a inclusão de Casco Antiguo na lista de
Patrimônio em Risco. O Itamaraty não respondeu aos pedidos de
explicação da Pública.
“Com essa decisão de não colocar Casco Antiguo-Panamá Viejo na lista de
Patrimônio em Risco, ficou evidente que a discussão do Comitê de
Patrimônio Mundial da UNESCO é política e não técnica”, acusa o advogado
Félix Wing. “ São os governos que tomam as decisões e eles decidem
pensando que provavelmente, em um futuro não distante, tomarão medidas
parecidas e seus pares irão devolver o favor. O que é sumariamente
deplorável”.
Fonte: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/29843/obra+no+panama+pode+colocar+em+risco+patrimonio+da+humanidade.shtml