Reportagem do Site História Viva, que reproduzo abaixo:
por Claude Mossé
Para aqueles que tiveram o
privilégio de percorrê-lo, ele é bem mais do que uma experiência. Uma
referência, um mito. Impossível esquecê-lo. Basta evocar o rolamento do
caminho de ferro na imensidão siberiana – caleidoscópio de paisagens
diversas – para despertar a curiosidade. A ferrovia mais longa do mundo –
quase 10 mil quilômetros, um quarto da circunferência da Terra na
altura do Equador – ainda inflama os espíritos.
Na taiga, entre
as colinas e montes pelados, os complexos industriais do rio Ural ao
lago Baikal – o mais profundo do planeta, localizado no sul da Sibéria –
da Europa à Ásia, os vagões fora de moda repintados nas cores da Rússia
pós-comunista oferecem um passeio ferroviário excepcional. No século
XXI, essa linha de trem – cuja construção exigiu que florestas inteiras
fossem abatidas, rios desviados, milhares de quilômetros de trilhos
instalados e centenas de pontes construídas – ainda surpreende pelo
gigantismo. Antes da ferrovia, para atravessar a Sibéria, utilizava-se o
trakt, uma estrada de cascalho, mantida sob os cuidados de
presidiários ou de mujiques, os exilados voluntários, para que os
negociantes, militares e adversários banidos – tais como os
dezembristas, os primeiros a se revoltar, em 1825, contra o regime
czarista – não tivessem os ossos deslocados nas carroças ou trenós, a
cada quilômetro.
Os pioneiros Quando se iniciaram as obras, em 1890, Anton Tchekhov, viajando pelo trakt
com destino à Ilha Sacalina, escreveu: “Eis-me em Ecaterimburgo (onde,
em 1918, foram executados o czar Nicolau II e sua família), eu tenho o
pé direito na Europa e o esquerdo na Ásia”. Se viajasse na década
seguinte, poderia ter chegado de trem. Foi o tempo gasto para a
instalação de 10 mil quilômetros de trilhos. Engenheiros e operários
pagaram caro para construir esse colosso em tão pouco tempo.
Tudo
começou em 1867, depois que o Império Russo, em dificuldades
financeiras por conta da Guerra da Crimeia (1853-1856), vendeu o Alasca
para os EUA. O governo russo percebeu, que a Sibéria, terra selvagem e
de exílio onde somente os negociantes de pele faziam fortuna, dispunha
de riquezas ainda não exploradas, entre elas as enormes jazidas de ouro.
Como transportá-las, se não fosse por ferrovia? Assim, nasceu a ideia
da Transiberiana. Desde que o projeto da ferrovia se tornou conhecido,
as sugestões se multiplicaram – algumas delirantes, como a de comboios
puxados por cavalos, na falta de carvão para alimentar as locomotivas a
vapor...
Iniciativa militar As autoridades
czaristas compreenderam rapidamente a importância econômica e
estratégica de um trem que ligasse Moscou a Vladivostok, a jovem cidade
construída em frente ao Japão, rival histórico da Rússia. Após o
conflito franco-prussiano de 1870, a diplomacia russa percebeu que, no
caso de guerra com os japoneses, a ferrovia seria um meio eficaz para
transportar as tropas – o que foi confirmado em 1904. Pode-se dizer que a
Transiberiana foi, a princípio, construída por militares e para
militares.
Em 1875, a publicação do romance Michel Strogoff , de
Júlio Verne, apresenta as terras desconhecidas da Sibéria Oriental ao
grande público. O entusiasmo foi tamanho que, de forma inesperada, os
chineses, invejosos da publicidade dada a essa região, interromperam as
exportações de chá para a Rússia. Fosse boiardo ou mujique, ninguém
ficou indiferente a essa medida: um dia inteiro sem chá era tão
insuportável que, na Transiberiana do século XXI, continua-se a dar mais
atenção à manutenção do samovar – um em cada carro – do que à do
eixos...
Embora no final do século XIX, o trem existisse somente nos documentos
do Comitê das linhas férreas, a colonização das terras aráveis
siberianas se acelerou. As pressões sobre o czar Alexandre III se
intensificaram. O barão Korf, governador da Sibéria Oriental, repete
que, do lado de Vladivostok, a via férrea seria uma espécie de muralha
contra toda e qualquer invasão chinesa ou japonesa. Seu filho, o
czareviche Nicolau, reteve a lição. Num documento assinado de próprio
punho e datado de 29 de março de 1891, ele sela o destino da
Transiberiana – ignorando que, 27 anos mais tarde, ele faria, naquela
ferrovia, sua última viagem.
Diante de um casebre de madeira, ele
instalou em Vladivostok o primeiro trilho. Para Serguei de Witte,
ministro das Finanças, tanto o ardor quanto a fé nessas obras
tornaram-se uma necessidade. As responsabilidades eram enormes: definir
um traçado, achar materiais, recrutar os operários, que precisariam ser
alimentados e alojados e ainda trabalhariam em condições climáticas
extremas. Primeira decisão: a construção deveria ocorrer,
simultaneamente, em três grandes áreas. Uma dificuldade maior surgiu: a
travessia do lago Baikal.
A Sibéria não dispunha de estaleiros
navais. Os comboios atravessavam essa extensão de água, verdadeiro mar
interior, numa barca construída na Inglaterra e enviada em peças
isoladas pelos trechos da linha já finalizados. De vocação militar, no
início, a ferrovia devia ser protegida. Daí, a ideia de expandir em 11
centímetros a largura dos trilhos, fixada na Europa e na Ásia a 1,52
metro.
Os construtores foram declarados “heróis da pátria”, uma
homenagem modesta para quem sofreu tanto. Após um dia inteiro cavando,
atulhando, instalando vigas e trilhos, os trabalhadores eram
transportados em carroças pelo trakt, de volta aos casebres de madeira
mofada dispostos por seções de 5 km, distância que eles deveriam
percorrer em caso de neve, vento ou calor escaldante, e sob o ataque
constante de mosquitos. O abastecimento de provisões, água potável – e
vodca – era problemático. Fossem engenheiros ou operários, esses homens
famintos podiam se transformar em animais selvagens, capazes de
estrangular um camarada por uma simples migalha de pão.
Milhares ficaram cegos Algumas
estelas ao longo do caminho lembram aos passageiros que ali ocorreram
mortes, muitas mortes. O ministro Witte escreveu um relatório destinado
ao czar, que se solidarizou, ordenando somente a substituição dos
defuntos por novas levas de trabalhadores – ninguém na capital procurou
criar um serviço de saúde. Entre as vítimas figuram milhares de
operários que ficaram cegos por causa de picadas de insetos.
Após
a morte de Alexandre III, em 1894, boiardos e mujiques imploraram para
que Nicolau II interrompesse as obras. O Transiberiana talvez nunca
tivesse sido concluída não fosse a contribuição do rico industrial belga
Georges Nagelmackers. Inventor dos vagões-leito, sob a sigla Pullman,
ele sugere a Witte o lançamento de um trem “confortável” e chega a
oferecer de presente um vagão-igreja. As obras, não mais sob tutela
militar, continuam. Gustav Eiffel, o pai da torre, sempre à procura de
um bom negócio, propõe o fornecimento de todo o percurso de vigotas
metálicas.
Continua o texto no link: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/transiberiana_a_mais_longa_ferrovia_do_mundo.html
Mapa da Transiberiana de 1897
Para o ministro das Finanças Serguei Witte, ardor e fé eram fundamentais para uma obra tão monumental. Retrato do Ministro das Finanças e membro do Conselho de Estado Sergei Yulyevich Witte, óleo sobre tela, Ilya Repin, 1903
Estação de Krasnoyarsk, na Rússia, em agosto de 2006