Às voltas com programa de restauração
que promete recuperar peças roubadas ou danificadas ao longo dos anos, Porto
Alegre tem histórico de cidade que não preserva estátuas, bustos e obras em
vias e parques
por Itamar Melo
21/09/2014 |
A prefeitura de Porto Alegre está
realizando no Parque Farroupilha uma modalidade peculiar de obra: o restauro de
monumentos que não existem. Anunciado como "um presente" para a
cidade pelo prefeito José Fortunati e propagandeado em diversos pontos da Redenção
por meio de painéis enormes, o projeto consiste na recuperação de 12 peças,
incluindo bustos, cabeças e placas de bronze. O detalhe é que já não há muito a
recuperar. As obras originais foram roubadas.
Boa parte da rapina ocorreu entre o
final de 2013 e o começo deste ano. Na falta das esculturas, relevos e placas
com inscrições, o que os trabalhadores mais têm feito é renovar pedestais de
pedra. A Secretaria Municipal da Cultura (SMC) promete, nos casos em que for
possível, substituir peças furtadas por réplicas feitas com material sem valor
comercial, como resina ou pedra.
A dilapidação é um retrato do que ocorre em diversos pontos da cidade. Nos
últimos anos, monumentos da Capital foram depenados. Um patrimônio artístico e
histórico único, formado ao longo de décadas, está perdido.
— Em tempos de paz, não existe outra
cidade do mundo que tenha sofrido uma destruição da arte pública como a que
Porto Alegre sofreu — lamenta o doutor em história da arte José Francisco
Alves, que pesquisa o tema há décadas e é autor de livros como A Escultura
Pública de Porto Alegre.
Alves questiona o uso do termo
"restauro" para o que está sendo feito no Parque Farroupilha. Ele
observa que restaurar significa tomar medidas para que o bem volte ao estado
original:
— Não se pode falar em restauro ao
limpar cepos de bustos que não existem mais. É uma atitude tão patética quanto
o que restou, cepos de granito ou alvenaria que não dizem nada, com as
homenagens e as placas roubadas. Pelo menos quatro dos 12 monumentos que a
prefeitura incluiu na restauração estavam no parque até o ano passado e foram
roubados recentemente.
Um exemplo são bustos de médicos
localizados junto à Avenida João Pessoa. Em outubro, a Liga Homeopática do Rio
Grande do Sul percebeu o sumiço da escultura em homenagem a um dos pioneiros da
especialidade, Licínio Cardoso, inaugurada em 1952 (foto acima). Representantes
da entidade procuraram a prefeitura, denunciaram o furto e pediram
providências.
Pouco depois, constataram o roubo do busto do médico Annes Dias, de 1949. Voltaram
a fazer alarde.No começo de janeiro, foi a vez do busto do fundador da
homeopatia, Samuel Hahnemann, inaugurado em 1943, ser levado.
— A prefeitura foi lenta. A cidade
está mergulhando em um esquecimento total e ninguém investiga para onde todas
essas obras roubadas estão indo. A perda foi irreparável — alerta o responsável
pelo departamento científico da Liga, Ben-Hur Dalla Porta.
Os homeopatas foram informados de que
os bustos serão refeitos — não mais em bronze, e sim em resina. O historiador e
arqueólogo Francisco Marshall, professor da UFRGS, faz objeções ao projeto da
prefeitura no parque, uma parceria com o Sindicato da Construção Civil
(Sinduscon/RS):
— O setor da prefeitura que cuida dos
monumentos foi manipulado por uma ação de marketing. Isso não é politica de
restauração. O que me preocupa é que o destino do que ainda existe em bronze na
cidade é o roubo. O próximo passo será serrarem os monumentos.
Luiz Antônio Custódio, coordenador da
memória cultural da SMC, afirma que o projeto na Redenção tem importância
educativa. E justifica a iniciativa:
— Muitos desses monumentos têm
vínculos afetivos para quem os produziu ou para quem os doou. Essas pessoas
querem vê-los recuperados.
Estátuas foram de uma secretaria para
outra
Algumas das peças que sumiram da
Redenção não foram roubadas, mas retiradas pela Secretaria do Meio Ambiente
(Smam) para prevenir furtos, afirma a prefeitura. A remoções ocorreram até
2011, abrangendo 11 placas de bronze, uma placa de granito, três bustos e uma
máscara de leão em bronze. Smam e SMC não detalham quais peças foram
recolhidas, mas acredita-se que entre elas possam estar os bustos de Luiz
Englert, Assis Brasil e Padre Cacique. No caso dos monumentos que foram
roubados, Custódio afirma que há chance de recuperação:
— Vamos buscar alternativas técnicas.
Podem existir casos em que não há possibilidade, porque não existem vestígios.
Logo, não serão feitas réplicas. Não podemos inventar arte. Mas quando houver
base, vamos recuperar.
No começo deste ano, com a
justificativa de deter a destruição da memória cultural de Porto Alegre, a
prefeitura transferiu a responsabilidade pelos monumentos da cidade. A
atribuição, que era da Smam, foi assumida pela a Secretaria Municipal da
Cultura (SMC). Enquanto o bastão passava de uma pasta para outra, criminosos
faziam uma limpa em praças e parques.
A promotora Ana Maria Marchesan, da
Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, não viu avanços e reforça que
a SMC tem uma "estrutura mínima, até pior do que a da Smam".
— É uma inércia incrível. É tudo
muito demorado — afirma.
Mesmo assim, Ana Maria não deposita
toda a responsabilidade sobre a prefeitura:
— As coisas são muito radicais em
Porto Alegre. A gente vê pelos movimentos sociais, que quando têm oportunidade
destroem tudo. Há muitos grupos anarquistas, a quem debito grande parte das
ações. É pesado debitar toda a conta no poder público. Nossa sociedade está
muito degradada.
Responsável pelo setor de memória
cultural da SMC, Luiz Antônio Custódio garante que houve avanços. Ele lista a
publicação de uma nova diretriz para conservação do patrimônio e contratação de
um inventário dos monumentos da cidade, que quando estiver pronto vai permitir
estabelecer prioridades de recuperação.
— Além disso, começamos uma ação
conjunta com Ministério Público, Brigada Militar, Guarda Municipal e governo
estadual para verificar alternativas. Estamos não só conservando, mas montando
um material didático escolar para que as crianças aprendam a importância dos
monumentos, de forma a diminuir a sanha do vandalismo.
Cuidado com as peças deveria ser
cotidiano
Segundo Custódio, o setor tem
recursos, mas esses recursos não permitem fazer tudo. Ele também rebate a
crítica de que a prefeitura é lenta demais para lidar com furtos e depredações.
— No serviço público ninguém faz o
que quer, faz o que é possível. E o possível é o processo, que para qualquer
coisa leva meses. E não é por burocracia, é a lei. As pessoas dizem: a
prefeitura não fez. Mas e a sociedade, fez o quê? Sobra sempre para o poder
público. Não há lugar que não tenha deterioração. Não é só aqui. É aqui e no
mundo.
José Francisco Alves, que é professor
de escultura do Atelier Livre da prefeitura e pesquisa a arte pública de Porto
Alegre há décadas, não conhece lugar em que se repita a deterioração vista na
capital gaúcha:
— Não comparo Porto Alegre com Paris
ou Barcelona. Comparo com Rio, com Vitória, com Belém, com Florianópolis, com
Curitiba, onde as obras estão iluminadas, limpas, bonitas. Se você vai a
Salvador e olha o Monumento ao Dois de Julho, uma estrutura enorme de mármore,
não tem um pingo de pichação. Enquanto isso, os nossos principais monumentos
estão podres. É algo sem parâmetro no país e no mundo. Porto Alegre precisa ir
a um psiquiatra.
Alves diz que a forma de combater a
deterioração é fazer conservação e manutenção cotidiana — até porque restaurar
depois sai caro. Ele considera um bom modelo o do Rio de Janeiro, que tem uma
equipe exclusiva para cuidar dos monumentos. Em Porto Alegre, cita como bom
exemplo a recente restauração do Chafariz do Menino com a Concha, na Redenção,
que segue íntegro porque há um funcionário designado para mantê-lo limpo e em
funcionamento.
Farrapos ao pé da letra
Os líderes da Revolução Farroupilha
nunca mereceram tanto a alcunha de farrapos como agora. Nos monumentos que os
homenageiam em Porto Alegre, estão em condição miserável. Um forasteiro que
visitar a estátua equestre de Bento Gonçalves vai ter dificuldade para
acreditar que ele é o herói máximo dos festejos de nossa data maior, o 20 de
Setembro.
O imponente monumento realizado pelo
escultor Antônio Caringi e inaugurado em 1936 vive uma situação de envergonhar
qualquer gaúcho. Além de estar totalmente pichado, em tintas das mais variadas
cores, teve recentemente uma cantaria de 400 quilos arrancada do pedestal. Os
bandidos quebraram a pedra para tentar arrancar a placa que ela emoldurava.Não
conseguiram.
Quem também sai de mais uma Semana
Farroupilha em estado vexatório é a estátua de Giuseppe e Anita Garibaldi,
inaugurada em 1913. Feito na Itália em mármore de carrara pelo renomado artista
Filadelfo Simi, que dedicou três anos ao trabalho, o monumento é considerado um
dos mais valiosos do país em termos históricos e artísticos. Mas está
abandonado.
Enegrecido de imundície, foi coberto
de pichações. No pedestal estão colados há uma eternidade cartazes que ninguém
se dá ao trabalho de retirar. A Secretaria Municipal de Cultura afirma que a
recuperação do monumento a Giuseppe e Anita Garibaldi é prioridade e que o
processo para que isso aconteça já foi finalizado — um ano atrás, quando ZH
publicou uma reportagem relatando os mesmos problemas, uma recuperação já era
anunciada. A estátua de Bento Gonçalves vai ter de esperar mais.
— Está na nossa lista de prioridades para o ano que
vem — afirma o coordenador da memória cultural, Luiz Antônio Custódio.
Na
Redenção, esculturas, bustos e placas de metal com inscrições foram
dilapidados, restando apenas as basesFoto:
Reprodução/Bruno Alencastro / Agência RBS
O busto do médico Annes
Dias, de 1949, também foi roubado recentemente
Foto: Fernando Gomes/Reprodução
Foto: Fernando Gomes/Reprodução
Estátua de Giuseppe e Anita
Garibaldi é uma das mais valiosas do país
Foto: Fernando Gomes
Foto: Fernando Gomes
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