Milton Ribeiro
Logo na entrada, gravada nas lajes, lê-se a seguinte inscrição :
Bem-vindo à mansão que encerra
Dura lida e doce calma:
O arado que educa a terra;
O livro que amanha a alma.
Dura lida e doce calma:
O arado que educa a terra;
O livro que amanha a alma.
A recepção | Foto: Milton Ribeiro (clique para ampliar)
Muito mais do que uma saudação, o verso deixa clara a ideologia de
Joaquim Francisco de Assis Brasil. Trabalho e cultura, transpiração e
conhecimento. O sonho do diplomata, político, advogado e escritor
Joaquim Francisco de Assis Brasil, que transformou sua granja em uma
moderna propriedade no campo, ornamentada por um castelo em estilo
medieval, está à venda. Tombado desde 1999 pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico do Estado, o Castelo de Pedras Altas precisa de
urgente reforma. A progressiva degradação do prédio de 44 cômodos e 12
lareiras ameaça o acervo do castelo, que contém, além de inúmeras peças
históricas, uma valiosa biblioteca de 8 mil volumes.
O Castelo, construído em granito rosa entre 1904 e 1909, está sendo
vendido a portas fechadas, isto é, com tudo dentro. O pacote inclui
diversos móveis de madeira maciça importados dos Estados Unidos e
França, mais estátuas, espadas, relógios — entre eles, um que pertenceu a
Bento Gonçalves — piano e a biblioteca. A biblioteca é famosa: há
clássicos em inglês, francês e latim. Dentre as raridades, os 22 volumes
da Enciclopédia Francesa de Diderot e D’Alambert, publicada em 1751.
Foto: assisbrasil.org (clique para ampliar)
O estilo medieval da construção — algo estranho para a região — foi
um presente de Assis Brasil para sua esposa Lídia de São Mamede, filha
de um conde europeu e que residia em um local semelhante na Europa.
Outra intenção do diplomata nascido em São Gabriel era a de provar que
era possível ser homem do campo sem ser rude. Assis Brasil queria
enobrecer o campo. Para enobrecê-lo, ele não apenas comprou livros, mas
também introduziu no local (e no Brasil) os gados Jersey e Devon, a
ovelha Karakul e o cavalo árabe.
Com sua granja, Assis Brasil tentava demonstrar o que havia aprendido
no exterior. Tinha a tese — na época revolucionária — de que uma área
pequena e bem trabalhada poderia produzir mais do que as tradicionais
fazendas gaúchas, onde o gado era criado sem maiores cuidados. Havia uma
estação de trem próxima ao castelo, hoje desativada. Ali embarcavam
animais das raças devon, jersey, karakul, além da lã de ovelha, banha de porco, queijos, manteiga e frutas secas.
Foto: Cecília Assis Brasil
No sonho de Assis Brasil, o trabalho caminharia junto com a educação.
“O arado e o livro são ferramentas do progresso”, escreveu. Depois de
trabalharem na terra, os trabalhadores poderiam estudar. O que Assis
Brasil não previu foi que a fazenda poderia até sobreviver de sua
produção, mas jamais sustentar um oneroso Castelo que se ressentiria
das infiltrações naturais do clima úmido do Pampa. O Castelo tem
aparência medieval, mas seu projeto trazia novidades exclusivas, como o
fato de os banheiros ficarem dentro da fortaleza, numa época em que a
lei mandava instalar sanitários fora das casas. As coisas antigas se
degradam. Já quando morreu, em 1938, Assis Brasil deixou dívidas que
fizeram com que a família se desfizesse de 130 hectares.
Pensado como saída, o turismo cultural não decolou. Lídia Costa
Pereira de Assis Brasil, neta de Assis Brasil, recebia os visitantes
cobrando-lhes um ingresso. Mostrava o castelo com sabedoria e amor, mas
era uma guardiã tanto esclarecida quanto feroz. Ai de alguém que se
desgarrasse do grupo ou que chegasse muito próximo dos livros, ai de
alguém fizesse uma piada sobre a foto abaixo ser a última imagem de
Santos Dumont vivo. “Assis Brasil jamais errou um tiro!”, ouvimos ela
afirmar, irritada (este é um relato de experiência pessoal).
Assis Brasil alveja Santos Dumont: adeus, maçã | Foto: assisbrasil.org
O Castelo não é apenas um curioso exemplar arquitetônico, ele tem
história. Ali, deu-se a assinatura do acordo de paz que encerrou a
revolução gaúcha de 1923. Em sua biblioteca foi assinada a paz de
Pedras Altas entre as forças políticas que apoiavam Borges de Medeiros e
suas enjoativas reeleições — foi presidente do estado entre 1898 e 1927
— e aquelas que se insurgiam contra o fato. A paz foi assinada em 14 de
dezembro de 1923. A Revolução de 23 durou apenas 11 meses, mas assustou
um estado onde — com suas degolas — estavam presentes as lembranças da
guerra de 1893, o mais sangrento dos confrontos da história do Rio
Grande. O recomeço de um confronto entre chimangos e maragatos
preocupava o estado. O acordo impedia Borges de Medeiros de se
recandidatar após concluir seu mandato. Deste modo, ele poderia
finalmente tornar-se nome de avenidas em todo o estado.
Inspiração para o título desta matéria, o escritor e atual Secretário
de Cultura Luiz Antônio Assis Brasil, primo de Lídia, escreveu a série
de três romances Um Castelo no Pampa, formado por Perversas Famílias, Pedra da Memória e Os Senhores do Século.
Lá está, como um dos personagens principais, o velho Assis Brasil. A
forma como ele é descrito nos romances deixou Lídia ressentida. Os dois
se relacionam educadamente, como se fossem embaixadores de duas nações
inimigas. Anos antes, quando esteve no Castelo, Assis Brasil teve acesso
à biblioteca e examinou seu exemplar da Enciclopédia Francesa. “O
livro está em perfeito estado, como se tivesse sido publicado neste
ano”. Fica a dúvida se alguém, além do “velho” Assis Brasil, consultou
aquela obra.
Foto: assisbrasil.org
Antes dos 20 herdeiros decidirem-se
pela venda, houve várias tentativas de captação de recursos para a
restauração do castelo. Por intermédio da Lei Rouanet, o projeto foi
aprovado em 2008 pelo Ministério da Cultura, mas não apareceram
interessados. Segundo Lídia, nem todos os herdeiros concordaram em ceder
a documentação necessária à captação da verba para o restauro. Por
enquanto, a propriedade não está à venda para o público: “Por ser um
patrimônio tombado, primeiro temos que oferecer ao município, ao estado e
à União. Eles têm preferência. É o processo normal”, explica. O Castelo
foi oferecido ao município de Pedras Altas, ao Estado e à União.
Ninguém respondeu ainda. Os corretores de imóveis escolhidos pela
família estão sendo orientados pelo Iphae (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico do estado) e quem comprar a granja terá que
continuar respeitando as regras do tombamento.
Lídia Assis Brasil diz que a falta de incentivos governamentais e de
empresas para manter a estrutura foi o principal motivo que levou a
família a tomar a decisão da venda. “São muitas as dificuldades para
manter o edifício. Porém, pensar que o patrimônio e a história terão a
oportunidade de serem preservados pelo novo proprietário é o que nos
consola. De qualquer maneira, está sendo uma fase muito difícil”,
revela.
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