Entre o musgo e as raízes, que avançam sobre as ruínas do ex-Museu do
Índio, ainda é possível “ouvir” as vozes de tribos em extinção no
Brasil, que tentam guardar a memória de sua cultura. Contudo, o golpe
fatal de picareta da remodelação do estádio do Maracanã não respeitará
nem esse espaço “sagrado”. “É como se matassem uma parte de nós, como se
estivéssemos perdendo um pedaço, porque neste lugar nossos antepassados
deixaram sua memória, sua luta”, lamenta Garapira Pataxó, da etnia
pataxó, em entrevista à IPS, depois que o governo do Estado do Rio de
Janeiro confirmou a decisão de demolir o lugar.
As autoridades alegam que é necessário para a construção de espaços
de “circulação e mobilidade” ao redor do Estádio Jornalista Mário Filho,
onde, em 2014, pela segunda vez na história, será jogada uma final de
copa do mundo. O prédio, construído há 147 anos, foi desde 1953 a
primeira sede do Museu do Índio, criado pelo antropólogo Darcy Ribeiro
(1992-1997), até que, em 1978, passou a ocupar um antigo casarão no
bairro de Botafogo. Também abrigou em sua origem o Serviço de Proteção
ao Índio, que mais tarde passou a ser a atual Fundação Nacional do Índio
(Funai).
Abandonado desde então e em avançado estado de deterioração, o
edifício foi ocupado em 2006 por cerca de 20 indígenas de diferentes
etnias, como “símbolo de resistência cultural”, recorda o líder indígena
Doitiró Tukano, do povo amazônico tukano. “Estamos presentes aqui para
mostrar o que temos de diferente em nossa cultura, porque não é cópia,
mas própria. Hoje, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, há 305 grupos indígenas com 186 línguas diferentes no
Brasil, e é isso o que queremos mostrar. Esta é nossa resistência”,
explicou Tukano à IPS.
Uma das versões, ainda não confirmada, é que será construído um
centro comercial e esportivo e um estacionamento no antigo museu,
vizinho ao histórico estádio, onde o Brasil perdeu a final do Mundial de
1950 para o Uruguai. O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral,
atribuiu a necessidade demolir o Museu do Índio a uma exigência da Fifa,
mas a entidade negou.
Renato Cosentino, porta-voz do Comitê Popular do Mundial de Futebol
2014 e dos Jogos Olímpicos 2016, comentou a contradição. “Muitas vezes é
usada a desculpa do esporte para desalojar pessoas de áreas de alto
valor imobiliário”, disse à IPS, referindo-se ao Rio de Janeiro e às
outras 11 cidades que serão sede da Copa. Foram desalojadas cerca de 170
mil pessoas em todo o país, e cerca de 30 mil no Rio de Janeiro, que
também receberá as Olimpíadas de 2016.
Precisamente, duas das favelas onde isso aconteceu são vizinhas do
Maracanã, um “símbolo de todo o processo de violação de direitos que
estamos vivendo no Brasil”, afirmou o representante do Comitê, que reúne
pessoas prejudicadas pelos megaencontros esportivos. “É uma grande
tristeza ver que nosso sonho acaba. É uma referência que gostaríamos de
guardar para as futuras gerações”, disse o líder Tukano, após explicar
que não é “contra a alegria do povo brasileiro pelo futebol. Mas, para
nós, o Mundial não traz nada. Claro que dará benefícios às grandes
empresas patrocinadoras”.
O grupo indígena se prepara para “resistir” à demolição de seu
espaço, enquanto a defensoria pública prepara sua contraofensiva
judicial, alegando o valor patrimonial histórico do prédio. Na área que
rodeia o edifício em ruínas, os indígenas construíram casas, com
materiais básicos como adobe, para viverem, e assim recriaram o que
chamaram de Aldeia Maracanã, onde reproduzem seus costumes em meio a uma
cidade que avança sobre eles. Entre escadas enferrujadas e raízes se
entrelaçando com paredes destruídas, os indígenas organizam atividades
culturais como danças, cerimônias, exposições fotográficas, rituais e
até desfiles de roupa ancestral.
Antes de ser confirmada a demolição, no lugar era preparado um ritual
de “metamorfose de menina para mulher”, para a qual viriam adolescentes
de várias aldeias do interior do país. “Veja como o índio gosta de
comer mandioca”, brinca Afonso Chamakiri, da etnia apuriná do Amazonas,
enquanto almoça com sua nova família pescado na brasa e farinha de
mandioca.
A história deste indígena apuriná é muito particular. Chegou ao Rio
de Janeiro com o sonho de ser ator. “Minha mãe veio uma vez para a
cidade e voltou para casa impressionada por uma caixa onde havia gente
que falava”, conta à IPS se referindo à “descoberta” da televisão por
sua mãe no dia em que saiu pela primeira vez de sua aldeia amazônica.
Chamakiri concretizou seu sonho e participou de vários filmes. O último
foi Vermelho Brasil, coprodução do Brasil com França e Canadá.
Sobre o muro levantado pela construtora responsável pela reforma do
Maracanã, alguns operários espiam a cerimônia dos indígenas ao receber a
IPS, pedindo aos seus ancestrais que iluminem o governo a respeito de
seu “espaço sagrado”. Chamakiri afirma que “não temos nada contra eles.
Muitos são índios como nós. Outros negros, povo como nós”. Chamakiri
gosta de contar uma história que poucos recordam sobre a origem do nome
que primeiro batizou um rio e depois o bairro carioca e, em seguida,
popularizou o estádio.
Maracanã é uma ave da região que ainda “vem comer o fruto dessa
árvore”, afirma, apontando para uma das muitas espécies que se mantêm
milagrosamente em pé em meio à urbanização. O pássaro sobreviveu à
civilização, mas o “antigo povo indígena maracanã, que dominava este
território já está extinto”, contou Chamakiri. Por isso, para ele é tão
importante manter o centro cultural, que “representa o registro de todas
as culturas ancestrais que começaram aqui e que foram destruídas neste
espaço. Queremos que se converta em um espaço indígena sagrado”.
Envolverde/IPS
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