Justiça autoriza demolição de três casas históricas listadas pela
prefeitura. Caminho aberto para que outros proprietários façam o mesmo.
Durante 20 anos, um dos elogios mais comuns feitos a Curitiba se
dirigia à sua política de patrimônio histórico. Chamavam-na de
“moderna”, um “modelo”. Embora não tivesse o peso de lei, mas de um
reles decreto, o que parecia um defeito jurídico resultou num fenômeno.
No lugar dos rigores do tombamento, o projeto municipal oferecia os
préstimos de uma equipe da prefeitura, que acompanhava os proprietários
de imóveis antigos nos restauros.
Em vez de proibi-los de mexer
numa tramela de porta, os técnicos ofereciam bulas sobre como usar e
preservar uma casa centenária. Ao mesmo tempo, premiavam os
proprietários com descontos no IPTU e alcançavam resultados
inimagináveis em se tratando de um assunto que mexe com o juízo dos
herdeiros de um casario.
O resultado veio a galope. Em vez de tombar não mais do que uma dúzia
de prédios essenciais à memória da cidade, a política curitibana
conseguiu salvar quadras e ruas inteiras. Para que se tenha uma ideia, a
prefeitura chegou a monitorar 900 imóveis históricos em Curitiba. O
Patrimônio do Estado, no Paraná inteiro, preserva perto de 200.
Mas as glórias curitibanas na salvaguarda do passado estão a perigo.
Nos últimos quatro anos, a política um dia capaz de arrancar confetes
das mãos de especialistas se tornou alvo de críticas impiedosas. A mais
comum diz que um decreto, por melhor que seja, não tem poder para salvar
imóvel algum. “O Judiciário não tem piedade”, lamenta o advogado Carlos
Marés, conhecedor de leis de tombamento.
Jurisprudência
De 2011 para cá, a prefeitura perdeu na Justiça três pedidos de
demolição de Uips, como são chamadas as “unidades de interesse de
preservação” da capital. Dois foram praticados – um na Rua Gutemberg,
477; outro na Avenida do Batel, 1.938. Há jurisprudência. Outros donos
de imóvel cadastrado agora podem fazer o mesmo. E o farão, a depender do
grau de insatisfação com as limitações a eles impostas pelo Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) no uso dos
imóveis. A depender desse efeito dominó, o que sobrou de conjuntos como
os da Avenida Batel e da Rua Bispo Dom José podem estar com os dias
contados. Há dois pedidos de demolição de Uips nessas vias. “Foi
inovador para a época, mas a corrida imobiliária mudou tudo”, constata
Rosina Parchen, diretora do Patrimônio do Estado.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, as derrotas no Judiciário
são um sinal evidente de que a era das Uips acabou e que, por ironia,
só uma lei de tombamento poderá salvá-las. Falam em urgência. O número
de unidades preservadas é uma incógnita. Já foram 900, mas hoje o site
da prefeitura aponta que são 619. A lista, diz-se, teria excrecências –
casas que não mereceriam ser Uips. Mas o maior defeito do levantamento é
não vir acompanhado de um inventário capaz de justificar a importância
desse ou daquele imóvel, o que teria deixado uma brecha para os
demolidores, já hábeis em colocar uma banana de dinamite no decreto
municipal.
Desvirtuamento
Difícil não culpar a prefeitura pelo atual estado das coisas. Em uma
década, pouco a pouco o setor de Patrimônio do Ippuc foi sendo
desmantelado, a ponto de perder a expressão. Especialistas em
patrimônio, concursados na prefeitura, não tiveram seus pareceres
reconhecidos, o que poderia impedir a demolição de imóveis como o
Hospital Bom Retiro e a fábrica da Matte Leão, entre outros, numa
flagrante derrota da memória.
A pá de cal que faltava veio em 2010 com o Decreto 689, que permitiu
usar a “transferência de potencial construtivo” para construir creches e
preparar a Arena do Clube Atlético Paranaense para a Copa de 2014.
Originalmente, o “potencial construtivo” foi adotado como fonte de
receita para restaurar imóveis cadastrados. O recurso é simples – o dono
de uma casa histórica com um ou dois pisos, mas em cujo terreno seria
possível erguer um prédio de 12 andares, vende os metros quadrados a que
teria direito para uma empreiteira interessada em construir mais do que
o permitido, em outro zoneamento da capital. Elas por elas, o dinheiro
ganho com a venda era usado no restauro e preservação.
Ao vulgarizar esse recurso, a prefeitura inflacionou o mercado. Pior:
o poder público se tornou concorrente dos donos de Uips. Um concorrente
desleal – é muito mais fácil comprar da prefeitura. “Começou a se falar
mais do lucro com a venda de potencial do que em patrimônio. A casa que
tem mais valor histórico para a cidade é que tem mais potencial
construtivo”, ironiza o arquiteto Jeferson Dantas Navolar, presidente do
Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Paraná (CAU).
A venda de potencial é hoje moeda para todo e qualquer projeto
urbanístico. Menos para salvar quem mais precisa. Sem lei de tombamento,
Curitiba adotou a lei da selva.
Eles dizem...
Lei de tombamento, já? O que dizem cinco entrevistados pela Gazeta do Povo
Lei de tombamento, já? O que dizem cinco entrevistados pela Gazeta do Povo
Sim
Rosina Parchen, diretora do Patrimônio do Estado
Ela defende que a política das unidades de interesse de preservação,
as Uips, seja entendida como um pré-tombamento, com classificação de
etnia, sistema construtivo e beleza, entre outros. “Do jeito que está
não tem força para garantir a integridade das casas. Uma ação judicial
as derruba”, alerta, lembrando que o alto valor alcançado pelos terrenos
desestimula os proprietários a lutarem pelos edifícios históricos.
Carlos Frederico Marés, advogado
“Curitiba está atrasada. Tem de criar uma lei de tombamento, já”,
afirma Marés, autor do livro Bens culturais e proteção jurídica. Para
ele, ao tentar preservar sem tombar, a prefeitura fez uma escolha
genérica e falsamente moderna, favorável à especulação imobiliária. “Há
recursos avançados de tombamento, nem sempre tão rígidos como se diz, e
são protetivos, ao contrário de um decreto”.
Francisco Zardo, advogado
Zardo acompanhou os três casos de liberação na Justiça de demolição
de Uips. Para ele, a atual política de preservação tem perdido na
Justiça ao não apresentar estudos técnicos que justifiquem por que um
imóvel deve ser mantido em pé. “Além do mais, as práticas municipais são
‘estranhas’ se comparadas às leis estaduais e federais, e nas quais
deveria se pautar para ser reconhecida.”
Não
Sérgio Póvoa Pires, presidente do Ippuc
Do alto de quem ajudou a consolidar a atual política de patrimônio
histórico, na década de 1980, Pires permanece acreditando na inovação do
projeto. “Curitiba exporta tendências. As unidades de interesse de
preservação [Uips] são inovadoras, podem inspirar outras cidades”,
afirma. Sua promessa, restaurar a importância do setor do patrimônio no
Ippuc, enfrentar o Judiciário e manter o corpo a corpo com os
proprietários. “É possível”.
Em termos
Jeferson Dantas Navolar, presidente da CAU
Para o arquiteto – autor do livro A arquitetura resultante da
preservação do patrimônio edificado em Curitiba , o sistema das Uips,
tal como foi criado, funcionaria se fosse uma política de estado. “Mas
virou negócio, trazendo à tona sua fragilidade jurídica e histórica”,
lamenta. Ele se refere à comercialização maciça de potencial construtivo
e ao fato de que a lista de Uips não tem justificativas rígidas e
claras. “Quantas Uips temos? Virou um mistério”, diz.
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=1345675&tit=Uma-cidade-sem-passado-e-sem-lei#ancora
Unidades de Interesse de Preservação
Casarão da Avenida do Batel, 1938
Rua Bispo Dom José, 2.481
Rua Bispo Dom José, 2.302
Casarão da Rua Bispo Dom José, 2.349
O arquiteto Jeferson Navolar em casa do engenheiro Mário de Mari, na Avenida Nossa Senhora da Luz
Mais informações sobre as residências no link: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=1345675&tit=Uma-cidade-sem-passado-e-sem-lei#ancora
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