Texto publicado no site Vitruvius, da arquiteta Andréa Albuquerque Garcia Redondo, autora do blog Urbe Carioca:
O prédio pertencia à União e estava abandonado desde
1977! A imprensa informou que foi comprado pelo Governo do Estado do Rio
de Janeiro à Conab por 60 milhões de reais, em outubro último.
As manifestações da sociedade civil contra a demolição
cresceram quando os grupos indígenas – que ocupam o local desde 2006
irregularmente, conforme noticiário – foram intimados a sair para que os
gestores da coisa pública joguem a construção abaixo.
Cabe esclarecer que aqueles eventos têm sido invocados
reiteradamente para justificar intervenções expressivas e de toda ordem
no Rio de Janeiro: físicas, no desenho urbano e com a alteração de leis
urbanísticas que interferem no perfil construído e na paisagem da
cidade, estimulam a ocupação de áreas livres e a expansão territorial;
transportes, com o abandono da Linha 4 original do Metrô e a
substituição de outros trajetos sobre trilhos pelo transporte rodoviário
e BRTs; financeiras, com incentivos fiscais para a indústria hoteleira e
para a construção civil; e com ameaças ao meio ambiente e ao patrimônio
histórico, entre outros exemplos.
A subjetividade inerente a alguns desses aspectos e a
impossibilidade de visualizar os resultados – de longuíssimo prazo no
caso das leis que aumentaram gabaritos de altura e áreas de construção
em praticamente toda a cidade – permite afirmar que os alardeados
benefícios são, no mínimo, duvidosos. Há os que diriam ‘questionáveis’,
‘prejudiciais’, ou, sem evasivas, ‘perniciosos’. O futuro dirá qual é o
adjetivo mais adequado!
O prédio da antiga fábrica Brahma, no Catumbi, foi
abaixo porque o Sambódromo precisava ser adaptado. Mas, ali surgirá uma
torre comercial de 26 andares, apenas um detalhe... O Autódromo do Rio
desapareceu para dar lugar ao chamado ‘parque olímpico’, conjunto de
equipamentos esportivos fixos e temporários cercados por um mar de
edifícios. O local, destinado pelo Plano Piloto da Baixada de
Jacarepaguá às corridas de automóveis, era non-aedificandi. Mas, os gabaritos já aumentaram três vezes e poderão crescer ainda mais, apenas outros detalhes...
Nossa paisagem e nossos valores culturais não deveriam
ir à mesa de sacrifícios, nem serem vendidos. Mas, ao que tudo indica,
já foram.
O caso do prédio que abrigou o Museu do Índio está na
pauta. Trata-se de patrimônio cultural carioca que pode virar pó a
qualquer momento, deliberada e desnecessariamente. Está em mau estado
por exclusiva responsabilidade do poder público, e pode ser recuperado.
O prédio em questão tangencia o limite administrativo
entre Maracanã e São Cristóvão, o outrora Bairro Imperial, onde fica a
Quinta da Boa Vista com seu Palácio – mansão doada à Família Real
cercada pelos jardins de Glaziou –, residência dos nossos rei e
imperadores que hoje abriga o Museu Nacional. No século XVIII o terreno
do antigo museu pertencia à Freguesia do Engenho Velho, vizinha da então
Freguesia de São Cristóvão, ambas destinadas a fazendas e chácaras que
ao longo do século XIX foram parceladas e deram lugar a moradias de alto
padrão para a época.
Em São Cristóvão, solares, palacetes e casario que
resistiram à renovação urbana na região – convertida em área industrial
em 1937 –, foram protegidos por lei municipal, um trabalho iniciado por
volta de 1980, desde então aprimorado e estendido a vários bairros da
cidade com a criação das Áreas de Proteção do Ambiente Cultural
(APACs). Com este instrumento legal preservam-semarcos históricos e
culturais ainda presentes de modo a manter a identidade de cada lugar.
O paralelo entre os bairros demonstra que ambos tinham
em comum a nobreza e a existência de construções de maior porte,
propriedade de famílias mais abastadas. Embora tenha sido noticiado que a
construção é de 1862, segundo relatório dos historiadores Eucanaã
Ferraz e Maria Teresa De Biase, de 1997, há poucas e contraditórias
informações sobre origem do prédio, inclusive quando àquela data.
Certo é que o contínuo descaso para com a Memória Urbana
do Rio e a renovação urbana exacerbada criaram situação diversa e até
curiosa: o pouco que sobrou precisa ser cuidadosamente avaliado e
defendido. Já passamos pela destruição inexplicável de símbolos – dos
quais o Morro do Castelo, sítio histórico de valor inestimável, local da
segunda fundação da cidade, é o maior exemplo. O povo carioca não quer
lamentar novas perdas.
O prédio que abrigou o Museu do Índio fica em espaço
amplo e árido, o que, hoje, paradoxalmente, lhe dá destaque e presença.
Embora degradado, foi considerado de interesse para a cidade pelo
Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural, o que também
significa que ele pode ser restaurado, recuperado, utilizado. A palavra
do colegiado deveria bastar para que a construção fosse mantida, mas,
infelizmente não foi acatada pelo Prefeito, que autorizou a demolição.
Há mais.
As alegações do governador de que (1) a FIFA determinou a
retirada do prédio foi desmentida pela entidade; (2) há necessidade
garantir a mobilidade dos torcedores (!) foi rebatida por técnicos e por
usuários do Maracanã; (3) o prédio não tem valor e não é tombado por
ninguém, a rigor nem mereceria comentário: seria o mesmo que decretar
que nenhum imóvel poderá mais ser tombado; e, (4) de que a construção
não tem valor histórico,é matéria para especialistas: dispensa réplica.
O Executivo Estadual deveria saber que três instâncias
podem avaliar o potencial para preservação dos bens culturais. O fato de
não ter recebido recomendação do IPHAN para o tombamento não diminui a
competência das outras esferas de governo, no caso, o Município e
Estado. Uma vez que o próprio órgão estadual de patrimônio histórico –
INEPAC, também é favorável à manutenção do prédio, o governador só pode
apoiar-se na espantosa decisão do Executivo Municipal, descartando, tal
como o prefeito, a opinião de técnicos e conselheiros.
Ainda há mais.
O projeto elaborado no escritório Burle Marx & Cia
Ltda. pelo arquiteto Haruyoshi Ono e equipe para o entorno do Maracanã
propunha ligá-lo ao Museu da Quinta através do Parque Glaziou e
mantinha o chamado “Casarão do Maracanã” íntegro, como se pode observar
em vídeo elaborado pela própria Prefeitura e que está disponível na Web.
Nas palavras do arquiteto e paisagista – que considera o projeto, que levou dois anos para ser concluído, de alta complexidade "O prédio tem uma importância histórica muito grande e não atrapalharia a dinâmica das novas calçadas, ciclovias e passarelas”.
Como se vê, o prédio pode permanecer. E deve. Por que
não receber os torcedores locais e visitantes mostrando que também temos
história, apesar dos nossos poucos 500 anos?
Finalmente, há a situação dos índios.
A ocupação do espaço aconteceu por erro duplo do governo
federal: abandono do que tinha obrigação de cuidar e condescendência
que se refletem nos problemas atuais. Há processos tramitando na
Justiça, contrários e a favor dos grupos que lá estão.
A nosso ver a natureza da questão indígena é
jurídico-social. Muito embora seja inegável a relação do prédio com a
história das etnias, o problema deve ser resolvido pelas instituições
responsáveis no foro adequado. Em primeiro lugar, o patrimônio histórico
e cultural edificado precisa ser mantido, recuperado e integrado ao
projeto de revitalização do entorno do Maracanã. Seu destino mais
adequado deve ser objeto de outra discussão.
Muitos prédios históricos, tombados ou não, ficaram
abandonados durante décadas e, um dia, por decisão política,
oportunidade, interesse da iniciativa privada, ou situação diversa,
vieram a ser recuperados. São exemplos recentes o Museu Mar, na Praça
Mauá, e a Casa Daros, em Botafogo. Ainda há tempo para salvar o belo
Casarão do Maracanã. Basta haver um mínimo de sensibilidade e esforço
por parte do prefeitoe do governador.
O grave problema dos índios - questão paralela –embora
tenha retirado a atenção do prédio do ponto de vista arquitetônico e
cultural, ao mesmo tempo e curiosamente teve o mérito de atraí-la.
Devido às suas características e por representar a memória da ocupação
urbana do Rio Imperial, o prédio pode e deve ficar para ser integrado ao
projeto de reforma/mutilação do Maracanã.
Se a sociedade civil está mobilizada, quer ser ouvida e
atendida, os governantes não apresentam argumentos consistentes que
justifiquem a demolição do antigo Museu do Índio. O impasse contém mais
um ingrediente: junto com o prédio histórico o governo pretende demolir
uma escola municipal, o Estádio de Atletismo Célio de Barros e o Parque
Aquático Julio Delamare, três equipamentos urbanos públicos em perfeitas
condições de uso e funcionamento. Prédio antigo, equipamentos
esportivos e escola também foram mantidos no projeto de Burle Marx &
Cia Ltda.
Nada justifica o desperdício de verbas públicas e o
descaso para com o patrimônio histórico. Neste último aspecto, se os
governos não dão bons exemplos quanto à proteção dos bens culturais
edificados, desprezam a memória da cidade e seu próprio patrimônio
cultural – valores material e imaterial de todos – jamais poderão exigir
o respeito às normas ao particular que é proprietário de prédios
históricos.
sobre a autora
Andréa Albuquerque Garcia Redondo, arquiteta, foi
Subsecretária Municipal de Urbanismo (1993-1996) e Presidente do
Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro
(2001-2007). Atualmente é autora do blog Urbe CaRioca.
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